Jornal Estado de Minas

GELEIA URBANA

De bombas e tradições


Mole Antonelliana é a mais tradicional confeitaria de Belo Horizonte, inaugurada em 1976. O nome faz homenagem à construção que, por muito tempo, foi a mais alta de Turim, com 167 metros de altura.

Inicialmente projetada por Alessandro Antonelli como o ponto central da comunidade hebraica de Turim, a Mole foi, ainda durante a sua construção, adotada pela prefeitura e dedicada ao Rei Vitor Emanuel II (e a sinagoga transferida para outras paragens).



A despeito das dificuldades para sua conclusão, a homenagem é justa e, assim como a Mole faz parte da história de Turim, a confeitaria faz parte da história de Belo Horizonte.

E da minha, apresentado, ainda novo, por meu pai às bombas de chocolate, avelã e baunilha (a despeito do nome e do fundador, italianos, todas as delícias ali têm inspiração e origem francesa).
Assim como meu pai há 45 anos atrás, apresentei a confeitaria aos meus filhos. Afinal, mais do que açucar, uma casa como a Mole Antonelliana é história, tradição, cultura, arte e gastronomia ao mesmo tempo.
E fica no Centro da cidade, numa das lojas (ou, para sermos modernos, na fachada ativa) de um edifício de escritórios (onde meu pai trabalhou, na sede de uma - outrora - grande construtora).



Fica também numa avenida com canteiro central, arborizada, próxima ao Automóvel Clube, à Faculdade de Direito, ao Edifício Solar (talvez o edifício residencial mais bonito do Centro de Belo Horizonte), da arquitetura brutalista dos Bancos Safra e Bamerindus, do Arquivo Mineiro, da Praça da Liberdade.

Local precioso, histórias de uma época em que Belo Horizonte ainda era lembrada como uma cidade moderna, com boa infraestrutura, belos prédios e um centro vibrante.

Era, também, uma época em que Belo Horizonte ainda não tinha seu Plano Diretor e, por isso, ainda não tinha aderido às "modernidades" como recuos frontais e laterais, e as lojas podiam se abrir para os passeios e conversar sem medo com os pedestres.




Não que fossem proibidos jardins frontais -mas, como não era obrigatório, os prédios que escolhiam o jardim frontal o faziam com vontade, bom gosto e bons projetos, não raro com esculturas e fontes. 

Mas tudo isso é passado e, daquela época, foram-se a vitalidade do Centro, a demanda por suas lojas, pelos seus escritórios e seus apartamentos. Sobraram prédios históricos - praticamente demolidos - que funcionam como estacionamento, a confeitaria Mole Antonelliana e a lembrança de um Centro vivo e funcional, valorizado.

Bombas (difícil entender como, por aqui, essa delícia francesa chamada éclair acabou sendo conhecida por bomba, mas é como é) são coisas extremamente delicadas, que não resistem a mais do que uma hora sem resfriamento. Um desafio logístico e, ao mesmo tempo, um exercício de força de vontade.
Bomba de avelã da Mole Antonelliana (foto: Instagram/Mole Antonelliana)
Não são poucos os desafios de produzir uma bomba que fique na memória de quem a experimenta. Além de conhecimento específico, a atenção é crucial em todos os passos do preparo, e até mesmo pequenos deslizes podem acabar em desastre.




E é com esse grau de preparo técnico, conhecimento, paixão e atenção que as bombas da Mole Antonelliana ainda me levam ao Centro mensalmente, repetindo com meus filhos o ritual que meu pai e nós, seus filhos, tivemos enquanto a construtora esteve no Centro.

E, a cada vez que vou lá, me pego pensando que, tivessem os nossos gestores municipais o mesmo preparo técnico, conhecimento, paixão e atenção para a cidade que a Mole Antonelliana tem para com seus doces e tortas, talvez a cidade estivesse ainda vibrante, viva, limpa e segura.

Talvez seus escritórios, apartamentos e lojas estivessem ocupados, mantendo empregos e oportunidades de moradia à distância de uma caminhada, desobrigando o nosso sistema de transporte público do vexame diário, e de seus usuários à humilhação constante.



Tivessem nossos técnicos e legisladores tido a oportunidade de conhecer uma cidade europeia que fosse, ou ler um livro sequer que, ao contrário de celebrar Brasília, apresentasse uma visão crítica e madura (para além dos arroubos utópicos) do que realmente deu certo, talvez a nossa cidade fosse, hoje, outra.

Por óbvio não tiveram e, acorrentados, jamais puderam sair de seus gabinetes e conhecer o mundo, ou ler um livro.

Fossem os confeiteiros trabalhadores teimosos, com a mania de rasgar receitas bem-sucedidas e substituí-las por palpites leigos e por receitas utópicas, tolas e jamais testadas, não seria possível manter a tradição da visita mensal à Mole Antonelliana. Meus filhos jamais teriam podido se deliciar com suas delicadas bombas e tortas.
Uma tradição teria se perdido, assim como a história, a cultura, a arte e, mais importante, uma forma de pensar e um jeito de fazer onde a tradição, o aprendizado acumulado e as experiências comprovadas garantem que, mesmo que os confeiteiros não sejam os mesmos nos últimos 47 anos, tudo o que saia daquela cozinha ainda hoje mantém o sabor e a qualidade originais.

Se isso não é o registro acabado da inteligência, gestão e engenhosidade humana, nada mais é.

(texto originalmente publicado no Caos Planejado)