Anotamos os primeiros três pontos na tabela de retorno ao lugar de onde o Cruzeiro jamais poderia ter saído. Vencer o Figueirense nos deu confiança e rumo. Sorrindo, voltamos a esperar, ansiosos, a próxima partida do Cabuloso. Passamos a fazer contas; perguntar pelos pendurados e contundidos; analisar esquema tático; sonhar com o fim da pandemia para regressar às arquibancadas e, o mais importante, lembrar de agradecer a quem nos fez cruzeirenses.
No domingo passado, Igor ligou para escutar Vô Fio sobre a peleja. O amor inquebrável pelo Cruzeiro foi legado do avô para o neto. O comentário, na resenha, como de costume, foi breve e direto: “O time tem jogado feio, mas é bem brigador. O que vale nesse momento são os três pontos”.
Leivino, o Vô Fio, sabe como não serão fáceis as 35 rodadas até o fim desse pesadelo, mas no romper dificuldades, esse senhor octogenário tem muito a nos ensinar. Nasceu em 1937, no Lajedão, um grotão baiano colado no Vale do Mucuri. Ainda adolescente, cansado da exploração no campo, caiu no mundo. A pé. Onde parava, trocava trabalho por comida ou pouso. Era década de 1950 e o Palestra, já sendo Cruzeiro, também vivia a catar trocados para sobreviver a uma crise financeira e institucional.
Cruzeiro e Leivino entraram a década de 1960 cheios de esperança, mas ainda sem se conhecerem. O baiano ganhara um emprego de carteira assinada em Contagem e o clube de Felício Brandi iniciava a montagem da Academia Celeste.
O time chegou a realizar um treino na Cidade Industrial, onde Leivino trabalhava no alto-forno na antiga siderúrgica Mannesmann. Ali, colado ao alambrado, assistindo a Dirceu Lopes conduzir a bola, se viu tomado de paixão pelo escrete das cinco estrelas e decidiu segui-lo por toda a vida.
Não perdia os jogos no Mineirão. Tornou-se campeão em cima do Santos, de Pelé. Mas a convivência seria interrompida bruscamente. Em meados dos anos de 1970, resolveu levar seu xodó, a pequenina filha Rose, para acompanhá-lo num Cruzeiro e Atlético de Lourdes. Pego de surpresa, se viu em meio ao estourar de briga entre as torcidas.
Curvado, tentando proteger a menininha com seu próprio corpo e temendo por sua vida, ele cerrou os olhos e prometeu: se saíssem vivos dali, nunca mais voltaria ao estádio para ver o Cruzeiro.
Rose sobreviveu, cresceu, se tornou mãe e deu um neto a Leivino. No primeiro aniversário de Igor, Vô Fio lhe vestiu com o manto sagrado, marca Energil C estampada em meio a estrelas azuis brilhantes.
O Cruzeiro passou a ser um elo entre eles. “Você tem sangue azul, menino”. O neto cresceu orgulhoso dessa profecia dita por Vô Fio até o dia em que, no quintal, se machucou e, decepcionado, viu jorrar um caldo vermelho.
Na juventude, Igor passou a ir ao Mineirão em todos os jogos. De lá, ao final das vitórias, ligava para ouvir os comentários com o avô. Sem saber da promessa de Leivino, não entendia o porquê de ele sempre se negar a ir ao estádio.
Mas brigador como o time de Enderson Moreira, Leivino tinha esse trauma para romper na vida. Foi quando, às vésperas do aniversário de Igor, ouviu dele o insistente pedido: “Vô Fio, vamos assistir ao Cruzeiro?”.
No auge dos seus 80 anos, Leivino lembrou do tempo em que rompeu a pé da Bahia a Minas; dos gols de Dirceu Lopes no 6 a 2 sobre o Santos e de todo o tempo em que acalentou no neto a paixão pelo Cruzeiro sem nunca ter dividido com ele a arquibancada. “Eu vou”, respondeu.
No dia 4 de fevereiro de 2018, Leivino adentrou novamente o Mineirão para ver o seu Cruzeiro jogar. Igor, feito cruzeirense pelo avô, não sabia se olhava para o gramado, onde Arrascaeta faria – de voleio – o gol da vitória sobre o América ou se observava o brilho nos olhos de Vô Fio.
Amanhã, se o Cruzeiro vencer a Chapecoense e porventura colar no G-4, o telefone da casa de Leivino irá tocar. Será Igor ligando para lhe agradecer por ter feito sangue azul celeste correr nas suas veias, sem se importar, caso novamente se machucar, se correrá vermelho apenas aos olhos dos outros.