Jornal Estado de Minas

Mesmo que o Cruzeiro ignore leis trabalhistas, Dedé exagera

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A convite do colunista Gustavo Nolasco, a coluna Da Arquibancada de hoje foi
escrita por Bruno Parreiras e Vinícius Cruz (*)

Dedé foi escravizado, como alegou em ação judicial contra o Cruzeiro? A partir desse questionamento, propomos uma reflexão. Segundo reportagem publicada pelo colunista Jamil Chade (UOL) no mês de dezembro, o salário mínimo do brasileiro ficou abaixo da média mundial em 2019, de acordo com dados da Organização Internacional do Trabalho. Também foi publicada no Portal UOL, ainda no início da pandemia no Brasil, pesquisa feita pela Federação Nacional dos Atletas Profissionais de Futebol (Fenapaf), em parceria com a Esporte Executivo, revelando que 75% dos jogadores recebem abaixo dos R$ 7 mil mensais. Na época desses levantamentos, se discutia a volta do futebol e como a parada da atividade profissional impactava financeiramente a vida da maioria.



Dentro desse contexto, receber a notícia de que um dos argumentos de Dedé ao acionar o Cruzeiro na Justiça era de que sua relação com o clube é análoga à escravidão deve nos soar absurdo. Um desatino pela desconexão com o país onde o atleta, hoje, compõe parte dos privilegiados economicamente. E soa mais absurdo quando a pandemia escancara a nossa realidade socioeconômica, em que milhares de brasileiros não têm condições de colocar comida na mesa.

Falar de relações análogas à escravidão num cenário de supervalorização dos salários de jogadores de futebol envolve variantes complexas e importantes de serem destacadas. Primeiro, porque é necessário discutirmos as relações estruturais brasileiras, forjadas na desigualdade social desde os tempos coloniais e exemplificadas, claramente, na diferença salarial entre negros e brancos. Segundo, porque é imprescindível entender que o futebol, desde seus primórdios na profissionalização, em 1933, até hoje, é visto como a principal via de inserção social da camada socioeconômica mais baixa, constituída majoritariamente pela população negra no Brasil.

É preciso lembrar que considerar escravidão o atraso salarial de R$ 750 mil estabelecido em contrato entre Dedé e Cruzeiro demonstra, além de todo esse entorno, desrespeito histórico com corpos de povos escravizados até 1888 e que hoje servem de base judicial para uma luta tão séria contra práticas escravocratas.



Mesmo com todos os fatos expostos, devemos ressaltar a necessidade de que o Cruzeiro cumpra suas obrigações, como qualquer entidade que estabelece vínculos profissionais. É um enorme desgosto ver um clube que nasceu de trabalhadores não ter, atualmente, condições de arcar com suas promessas. É fundamental que a reconstrução da instituição não se limite apenas ao acesso para a elite do futebol nacional e retomada de grandes conquistas, mas que seja também de valores.

Que esses fatos nos levem à reflexão sobre nossa relação com o futebol, construção dos ídolos e de mundo como um todo. Em uma sociedade onde a palavra 'mito' é usada, às vezes, de maneira tão corriqueira, não nos esqueçamos de um dos significados desse substantivo: algo ficcional. E se há algo que, fatidicamente, não é um mito na construção histórica brasileira é a escravização de pessoas e as mazelas originadas por essa condição, seja lá atrás, nos períodos colonial e imperial, mas também na contemporaneidade.

E, felizmente, Dedé não é uma pessoa escravizada. Ainda que todas as estruturas sociais de onde surgem a maioria de jovens brasileiros, futuros jogadores de futebol, muitas vezes tentem lhes impor esta condição histórica deprimente em nosso Brasil.

(*) Bruno Parreiras é professor, historiador e membro dos coletivos Democracia Celeste e Resistência Azul Popular e do grupo de estudos Memória FC
(*) Vinícius Cruz é professor, bacharel em Letras, redator no podcast Passe Longo e membro do coletivo Resistência Azul Popular