Restrinjo a poucos ídolos o patamar de chamá-los pelo nome completo. “Ademir” Roque Kaefer. William “Douglas” Humia Menezes. Maria “Salomé” da Silva. A outros gigantes, faço questão de marcar o apelido com o sobrenome palestrino. “Nani” Lazzarotti. “Niginho” e “Ninão” Fantoni. A elegância despendida por eles ao defenderem o manto sagrado me pede uma formalidade ao evocá-los como registros num cartório de ofício.
Entre esses declamados por nome e sobrenome, em meio ao meu amor poético pelo time, está Raimundo “Nonato” da Silva. O maior lateral-esquerdo da história centenária do Palestra/Cruzeiro.
Parêntese para um aparte. Há quem deve estar lançando impropérios contra esse rabiscador por não considerar Juan Pablo “Sorín” ou “Vanderlei” Lázaro como os maiorais. Porém, para dar cabo a esse particular, admito terem sido eles os melhores canhotos da nossa camisa 6, porque o maior de todos foi mesmo o destro Nonato. Fecho parêntese.
Raimundo nasceu em Mossoró, sertão do Rio Grande do Norte, primeira cidade brasileira a abolir a escravatura (1883); a conceder o voto às mulheres (1928) e a repelir à bala o bando de Lampião, em 1927. De lá, o menino levou coragem para superar os Lampiões da vida. E não foram poucos.
Ainda criança, ajudava o pai na dura lida de assentar tijolos. Perdeu a mãe cedo, e vivendo com a irmã, vagou pelo Nordeste. Um infortúnio tirou-lhe o sonho de ser aprovado numa peneirada em Maceió.
Quando tudo lhe dizia para desistir, resistiu, superou e foi aceito no Baraúnas, time da sua Mossoró. De lá, o ABC de Natal. A notícia de um gabiru bom de bola correu como corisco. Migrante nordestino, foi parar no Pouso Alegre, na fria Minas Gerais. Mal terminou o Campeonato Mineiro de 1990 e já estava arrumando o embornal para arribar na Toca da Raposa.
Seu posto de segundo reserva da lateral esquerda não durou nem uma semana de treino. O técnico Carbone mandou os medalhões Eduardo e Paulo César Carioca para o banco, dando a camiseta 6 para o garoto nordestino.
Foi xodó de Carbone, Evaristo de Macedo e Pedro Pires de Toledo. Até a volta de Ênio Andrade ao Cruzeiro. O treinador tricampeão brasileiro deu logo o recado à diretoria: não trabalharia com jogadores – para ele – desconhecidos. O “tal Nonato” não seria seu titular. Pediu a contratação de Célio Gaúcho.
Resistir e superar. Bastaram poucos coletivos para Seu Ênio entender. A camisa 6 já tinha nome, sobrenome e sotaque potiguar. Dali em diante, Nonato ganhou a confiança do comandante. Na virada de 20 para 21 de novembro de 1991, os dois se abraçaram no vestiário do Mineirão como dois velhos conhecidos. Conquistavam a Supercopa, numa partida estupenda de Nonato improvisado na lateral direita contra o River Plate.
De titular absoluto a líder no gramado e vestiário. Até mesmo no escrete de estrelas nacionais da Supercopa de 1992, Nonato foi de extrema importância ao segurar – longe da imprensa e da torcida – um racha no elenco que beirou os socos e pontapés.
De líder a capitão. Em 1996, após o decepcionante empate no jogo de ida da final da Copa do Brasil, o “Capita”, aos berros, encarou cada um dos companheiros e perguntou-lhes se sentiam-se inferiores aos respectivos ocupantes de suas posições no Palmeiras/Parmalat. Todos eles, até hoje, creditam àquela preleção de Nonato o fator que levou o time à conquista épica.
De capitão aposentado a cruzeirense apaixonado. Seus olhos ainda brilham ao verem o Cruzeiro em campo. Suas pernas, inquietas e marcadas pelo tempo, parecem querer superar a marcação adversária com as viradas de jogo que só ele era capaz de fazer com tamanha precisão.
Enfim, Nonato poderia deitar-se nos louros da brilhante carreira, mas optou por continuar resistindo, superando e amando loucamente o time que tanto honrou, e pelo qual eternizou seu nome e sobrenome.
Ontem, ele completou 54 anos, dos quais oito dedicados a se tornar o maior lateral-esquerdo da história do futebol de Minas Gerais. Ainda é tempo de lhe dizer: Parabéns, meu amigo Raimundo Nonato “Cruzeiro” da Silva.