Jornal Estado de Minas

DA ARQUIBANCADA

O Cruzeiro derrotou o ódio, a festa antecipada, o rei nu

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Amigas e companheiros de confidências desse espaço, onde ouso rabiscar meu eterno amor pelo Cruzeiro Esporte Clube. Por dever de ofício e justiça à história, peço licença para iniciar nossa prosa semanal não com os meus devaneios, mas, sim, imortalizando a mais linda defesa que um goleiro já fez em 100 anos desse Time do Povo Mineiro.


Poesia em estado bruto, ela não ocorreu debaixo das traves, mas, sim, antes de o nosso escrete adentrar o campo no último domingo. Olhos vidrados, coração azul exalando amor pelo Cruzeiro, Fábio, o ser humano que mais vestiu o manto sagrado na história do universo, lançou seus camaradas ao gramado assim:

“Vocês sabem quem nós somos? Nós somos o Cruzeiro, porra! Essa camisa aqui, ó. Esse escudo aqui, ó, que a gente enverga do lado esquerdo, do coração, sabem o que significa? É uma Nação que está só esperando a gente se dar bem aqui para comemorar, rapaziada. Então, eles estão na torcida, mas ganha é lá dentro. Não é com palavras. É com atitude. Essa história foi construída com dedicação, com raça, com sangue. E hoje, no centenário, é a nossa oportunidade. Nós escrevemos a história até o final! Nossa motivação é meter essa camisa aqui e entrar lá dentro. É um sonho nosso. Hoje, a gente tem a oportunidade de realizar sonho. Então, aproveitem! Joguem!”

Fábio não só fez um time vencer a peleja contra o clube dos endinheirados, da elite modorrenta de Belo Horizonte. Ele escreveu o prefácio do capítulo definitivo de uma história de 100 anos, em que o time criado pelo povo trabalhador escancarou a arrogância do Atlético de Lourdes, o ex-clube da Turma do Sapatênis e atual Carteira de Investimentos de bilionários (de sapatênis).

Mas voltemos ao domingo, 11 de abril de 2021. O Cruzeiro venceu a disputa esportiva, o ódio, o desejo de vingança, a ilusória festa antecipada. Mas eram traumas que não nos pertenciam. Se para o lado de lá terminou com afogados no próprio fel, de cá, não devemos tirar os pés do chão. Foi apenas uma pequenina evolução para uma caminhada muito longa e árdua. Em outra poesia concreta, Rafael Sóbis fechou aquele dia assim:

“É para cima! É daqui para mais. Ganhamos um jogo. Mas a gente mostrou que a gente pode. O fim do nosso ano não é hoje. Hoje é o começo. O fim é na Série A. Hoje, mais do que nunca, a gente provou que pode! Todo mundo, quem jogou, quem entrou. Esse maluco aqui (Fábio) fez um discurso que é do caralho. Como que não vai ter orgulho de estar usando essa camisa? Nove milhões de pessoas aí numa crise fodida. Hoje, nós demos alegria para eles. Depois de um puta tempo. Parabéns! Orgulho!”

Futebol deveria ser apenas um jogo. Assim como a história deveria ser contada apenas pelo viés da verdade, mas como no futebol mineiro isso não ocorre, exaltemos outro personagem: Aírton. Um boleiro comum, que, ao marcar o gol da inacreditável vitória, acabou por se tornar o “Jacinto do Século XXI”, o Revétria de sotaque paraense.

Como no clássico conto do poeta dinamarquês Hans Christian Andersen, Aírton, com seu tento sob o silêncio de um Mineirão sem torcida, se transformou no menino a correr pela cidade, gritando para uma multidão boquiaberta: “Coitado do rei, está nu! O rei está nu!”

Sim, na vitória do Palestra/Cruzeiro no clássico centenário, a turma de súditos dos bilionários reis estava nua. Os falastrões, que pediam mais milhões e nove gols, estavam nus. A ala da “aldeia”, que por 100 anos se presta ao papel de sustentar essa mentira, estava nua.


Mas na toada do futebol mercantilista, certamente, a Carteira de Investimentos de Lourdes trará lucros, quiçá, até títulos. Mas, para sempre, depois de 11 de abril de 2021, todos saberão que tudo não passará de dinheiro, e não fruto de camisa, amor ou história.

Por fim, relembrando a arrogante ironia gratuita contra o desmantelado Cruzeiro, desferida por um certo bilionário, que afirmou ser – sempre – o América o rival do seu ex-clube. Hoje, a ele me dirijo, peço perdão e admito: Você tinha razão.