O falso pênalti não foi marcado domingo. Já estava assinalado há 101 anos. Desde quando uma torcida de imigrantes e operários da periferia de Belo Horizonte ousou ir contra os poderosos, fundando o Time do Povo Mineiro, Palestra/Cruzeiro.
Ao dobrar os joelhos aos 38 minutos do segundo tempo, após perder mais uma disputa de bola, Hulk deu o sinal verde para consolidar a pressão construída por ele mesmo ao longo do jogo, quando teve total liberdade para apitar no ouvido do árbitro. Falhava a soberba de quem tinha a absoluta certeza de que iria “destruir” o Cruzeiro. Foi preciso acionar o ato final do teatro quando o moleque Vitor Rock nroll` (como batizou o mestre Geovano Chaves) colocou os poderosos em estado de ódio. Afinal, seria ultrajante para os Bilionários do Brasil Miséria o alinhamento a outro mecenas do Atlético de Lourdes – Newton Cardoso, pois no dia seguinte o mundo inteiro repetiria os gols de outro menino de 17 anos sobre eles, em 1994, quando o ex-governador bancou o time de medalhões de um outlet de sapatênis.
Calejados, sabíamos: seria utópico chegar ao fim da peleja sem uma expulsão ou um pênalti para a agremiação oriunda da elite política-econômica e da oligarquia vergonhosa de Belo Horizonte (que se mantém no poder atualmente). A história de privilégios repetida há 101 anos estava novamente aberta como uma veia do futebol mineiro a jorrar vergonha.
“Nós já sabíamos que iríamos jogar contra isso. É difícil jogar assim. A Federação. Está ficando ruim. Eu sou uruguaio, nunca vi isso na minha vida, em nenhuma parte do mundo. Pode errar um jogo? Pode errar, mas errar em todo o jogo e cobrar esse pênalti é incrível.”
Palavras do técnico Pezzolano. Seu sangue latino-americano fervia de indignação, enquanto na arquibancada, 5 mil cruzeirenses continuavam cantando como guerreiros latinos frente ao fogo covarde dos ditadores e da Turma do Sapatênis.
Mas, comandante, infelizmente, em Minas Gerais assistimos a isso desde 1921. Por isso suas palavras lembraram seu conterrâneo, torcedor azul e branco do Nacional de Montevideo, o escritor Eduardo Galeano. O gênio da obra-prima sobre as injustiças, o livro “As veias abertas da América Latina”.
Portanto, domingo passado não foi algo jamais visto. Foi mais uma veia aberta desse corpo em estado de putrefação chamado futebol mineiro, de onde o mau cheiro nos leva à sua latrina, a Federação Mineira de Futebol.
O futebol encanta, como o fato de ser latino-americano, exatamente porque permite o sonho, a luta contra opressão e artimanha dos poderosos para vencer o povo. Hulk, ao dobrar os joelhos para o falso pênalti, foi exatamente a essência do Atlético de Lourdes. Naquele instante, meu respeito por sua história de latino-americano da Paraíba ruiu como um castelo de cartas marcadas.
“A chuva que irriga os centros de poder imperialista afoga os vastos subúrbios do sistema. Do mesmo modo, e simetricamente, o bem-estar de nossas classes dominantes – dominantes para dentro, dominadas para fora – é a maldição de nossas multidões, condenadas a uma vida de bestas de carga”, o escrito por Galeano poderia ser lido por Hulk.
Mas no pós-peleja, para nós, o que ficou foi orgulho. De estar do lado certo da história. Do azul e branco. Do sonho, da juventude e da fé de que jamais iremos nos render à podridão do Futebol Mineiro.
“Vamos chegar à final e vamos ganhar esse jogo. Esperamos que de forma neutra”, disse o latino-americano Pezzolano, a quem dedico esse cântico adaptado – pelo saudoso Izzi, da torcida TFC – sobre música de Fernando Brant, Lô Borges e Márcio Borges, que já fala sobre não temer, não ter medo e sobre todo dia ser dia de viver:
“Eu sou da América do Sul/Cruzeiro eu sempre vou ser/E agora é nós por nós, campeões nós vamos ser/Sou Cruzeiro, sou Minas Gerais”.
Seguimos, Nação Azul!
“La primera condición para cambiar la realidad consiste en conocerla”
Eduardo Galeano, livro “As veias abertas da América Latina”