Jornal Estado de Minas

DA ARQUIBANCADA

Cruzeiro Popular Brasileiro

 

12 de agosto de 1942. Numa casa humilde na cidadezinha de Caetanópolis, porta de entrada do sertão mineiro, um grito fino quebrou o silêncio. O primeiro choro ritmado era o “canto” de estreia da bebê que viria a se tornar a maior voz feminina da história do samba. Nascia Clara Francisca Gonçalves Pinheiro, a cruzeirense Clara Nunes.



Pouco depois, em 7 de outubro, também de 1942, em meio à Segunda Guerra Mundial e ao posicionamento oportunista do ditador Getúlio Vargas, o Palestra Mineiro trocava de nome para Cruzeiro Esporte Clube. Por um ato de resistência palestrina, ganhávamos as cores azul e branco. O clube dos operários e imigrantes definitivamente dava seu primeiro passo para se tornar o mais popular time de futebol de Minas Gerais.

Ainda em 1942, em 26 de outubro, nasceu numa favela da Tijuca, no Rio de Janeiro, um menino negro e mirrado. Perdeu a mãe solteira ainda no segundo ano de vida. Após ser adotado, mudou-se para Três Pontas, no Sul de Minas. Lá aprendeu a cantar. Quando se percebeu músico, mudou-se para Belo Horizonte, onde, décadas depois, se tornaria a maior voz de Minas Gerais, o cruzeirense Milton Nascimento.

Para a capital mineira também se mudou a moça Clara Nunes. Fugindo de uma ameaça de morte a um parente, foi morar na região fabril da Cachoeirinha e do Renascença. A voz não era mais de choro, mas sim de um esplendor contagiante. Passou a cantar nas festas religiosas dali mesmo.



No mesmo bairro morava o maestro Jadir Ambrósio. Palestrino, primeiro negro a se formar no Conservatório de Música da capital e autor do hino do Cruzeiro. Ele se encantou pela voz adorável de Clara Nunes e a levou para a rádio, no programa de Aldair Pinto, o mesmo que anos depois, comandaria a Charanga do Cruzeiro.

Na mesma época, Milton Nascimento começava a tocar nos inferninhos do Centro de Belo Horizonte. Logo, a fama de sua voz divina chegou à casa da família Borges, um reduto de cruzeirenses, dos quais o filho Lô se destacava na paixão. Formava-se ali o embrião do Clube da Esquina.

Numa dessas noites, Milton assumiu o contrabaixo, enquanto seu amigo Wagner Tiso ia ao piano. Foram escalados para o trio que acompanharia Clara Nunes em uma de suas apresentações.

Era o primeiro encontro das duas maiores vozes da música mineira. Eles voltariam a ocupar o mesmo palco – não juntos – nos bailes dançantes da sede do clube que lhes arrebataria os corações: o Cruzeiro, no bairro operário do Barro Preto.



Anos depois, Clara Nunes seguiu para o Rio de Janeiro. Inicialmente, vestiu-se de verde e rosa na Mangueira, mas acabou levada para a Portela por sambistas de Oswaldo Cruz e Madureira. Apaixonou-se perdidamente pelo azul e branco da escola.

No livro “O time do povo mineiro”, o brilhante professor e pesquisador Gladstone Leonel Jr. conta essa história de amor. Ele recuperou uma declaração da cantora à Rádio Bandeirantes, em 1981, em que ela diz: “Começou por causa da cor, azul e branco. A primeira coisa. Porque eu, em Belo Horizonte, sou cruzeirense, eu comecei a cantar no Cruzeiro Esporte Clube. (...) Aí, começou aquela coisa de achar a Portela, por causa do azul e branco”.

Recentemente, na celebração de seus 80 anos, Caetano Veloso, ao homenagear outros gênios da música nascidos – como ele – em 1942, se esqueceu de Nara Leão, Tim Maia, Nelson Rufino e Clara Nunes (assim como o próprio Cruzeiro não o fez no último 12 de agosto). Mas se lembrou de Milton, do portelense Paulinho da Viola e de Gilberto Gil. Esse último, torcedor fervoroso do Bahia, que jamais escondeu sua admiração pelo Cruzeiro em Minas Gerais.

A data de 1942, celebrada agora pelo clube por sua “brasilidade”, obviamente, vai muito além do amarelo. Se a estupidez da guerra nos deu o nome “Cruzeiro” e a resistência palestrina à ditadura nos fez azul celeste, esse ano também deve ser celebrado por ter dado ao país inúmeros gênios de sua Música Popular Brasileira (MPB). Entre eles, os cruzeirenses Clara Nunes e Milton Nascimento, as vozes mais adoráveis da história de Minas Gerais.