12 de agosto de 1942. Numa casa humilde na cidadezinha de Caetanópolis, porta de entrada do sertão mineiro, um grito fino quebrou o silêncio. O primeiro choro ritmado era o “canto” de estreia da bebê que viria a se tornar a maior voz feminina da história do samba. Nascia Clara Francisca Gonçalves Pinheiro, a cruzeirense Clara Nunes.
Pouco depois, em 7 de outubro, também de 1942, em meio à Segunda Guerra Mundial e ao posicionamento oportunista do ditador Getúlio Vargas, o Palestra Mineiro trocava de nome para Cruzeiro Esporte Clube. Por um ato de resistência palestrina, ganhávamos as cores azul e branco. O clube dos operários e imigrantes definitivamente dava seu primeiro passo para se tornar o mais popular time de futebol de Minas Gerais.
Para a capital mineira também se mudou a moça Clara Nunes. Fugindo de uma ameaça de morte a um parente, foi morar na região fabril da Cachoeirinha e do Renascença. A voz não era mais de choro, mas sim de um esplendor contagiante. Passou a cantar nas festas religiosas dali mesmo.
No mesmo bairro morava o maestro Jadir Ambrósio. Palestrino, primeiro negro a se formar no Conservatório de Música da capital e autor do hino do Cruzeiro. Ele se encantou pela voz adorável de Clara Nunes e a levou para a rádio, no programa de Aldair Pinto, o mesmo que anos depois, comandaria a Charanga do Cruzeiro.
Na mesma época, Milton Nascimento começava a tocar nos inferninhos do Centro de Belo Horizonte. Logo, a fama de sua voz divina chegou à casa da família Borges, um reduto de cruzeirenses, dos quais o filho Lô se destacava na paixão. Formava-se ali o embrião do Clube da Esquina.
Numa dessas noites, Milton assumiu o contrabaixo, enquanto seu amigo Wagner Tiso ia ao piano. Foram escalados para o trio que acompanharia Clara Nunes em uma de suas apresentações.
Era o primeiro encontro das duas maiores vozes da música mineira. Eles voltariam a ocupar o mesmo palco – não juntos – nos bailes dançantes da sede do clube que lhes arrebataria os corações: o Cruzeiro, no bairro operário do Barro Preto.
Anos depois, Clara Nunes seguiu para o Rio de Janeiro. Inicialmente, vestiu-se de verde e rosa na Mangueira, mas acabou levada para a Portela por sambistas de Oswaldo Cruz e Madureira. Apaixonou-se perdidamente pelo azul e branco da escola.
No livro “O time do povo mineiro”, o brilhante professor e pesquisador Gladstone Leonel Jr. conta essa história de amor. Ele recuperou uma declaração da cantora à Rádio Bandeirantes, em 1981, em que ela diz: “Começou por causa da cor, azul e branco. A primeira coisa. Porque eu, em Belo Horizonte, sou cruzeirense, eu comecei a cantar no Cruzeiro Esporte Clube. (...) Aí, começou aquela coisa de achar a Portela, por causa do azul e branco”.
Recentemente, na celebração de seus 80 anos, Caetano Veloso, ao homenagear outros gênios da música nascidos – como ele – em 1942, se esqueceu de Nara Leão, Tim Maia, Nelson Rufino e Clara Nunes (assim como o próprio Cruzeiro não o fez no último 12 de agosto). Mas se lembrou de Milton, do portelense Paulinho da Viola e de Gilberto Gil. Esse último, torcedor fervoroso do Bahia, que jamais escondeu sua admiração pelo Cruzeiro em Minas Gerais.
A data de 1942, celebrada agora pelo clube por sua “brasilidade”, obviamente, vai muito além do amarelo. Se a estupidez da guerra nos deu o nome “Cruzeiro” e a resistência palestrina à ditadura nos fez azul celeste, esse ano também deve ser celebrado por ter dado ao país inúmeros gênios de sua Música Popular Brasileira (MPB). Entre eles, os cruzeirenses Clara Nunes e Milton Nascimento, as vozes mais adoráveis da história de Minas Gerais.