“O Jacaré comeu a Raposa! Hahaha.” Uma senhora, carregada no sotaque soteropolitano, gritou na minha cara ao nos cruzarmos no Largo do Campo Grande, na cidade alta de Salvador. Era um sábado à tarde. Mesmo tendo sido derrotado pelo Bahia, com dois gols do desconhecido Vitor Jacaré, no dia anterior, eu resolvi caminhar pela capital baiana com o manto sagrado. Engoli seco a gozação e segui rumo ao Farol da Barra.
Na noite anterior, havia acontecido a nossa estreia no Campeonato Brasileiro de 2022. Para vivenciá-la, cheguei à Fonte Nova cheio de esperança. Motivado pela sinergia inacreditável entre time e torcida materializada na final da Country Cup, dias antes, quando fizemos – nas arquibancadas do Mineirão – uma das festas mais épicas do futebol mundial, mesmo sendo derrotados pelo time dos Bilionários do Brasil Miséria e da Turma do Sapatênis, por 3 a 1.
O portão de entrada da torcida visitante na Fonte Nova fica bem próximo ao Dique do Tororó. O clima era de tensão e rivalidade exacerbada. Uma meia lua formada por policiais impedia o avanço de torcedores do Bahia. Com cânticos de ódio em nossa direção, eles apenas esperavam um momento de descuido da segurança para invadirem e nos agredirem.
Com o ingresso nas mãos, subi uma eternidade de degraus até atingir o mais longínquo espaço dedicado aos visitantes. O estádio ainda estava vazio quando o gramado surgiu na minha frente. Do nosso lado, poucos torcedores. O gigante e amigo Múcio da Máfia Azul, junto de outros representantes das demais organizadas, como a Comando Rasta e a TFC. Os amigos Marceleza e Zé Neto chegaram pouco depois para me fazerem companhia durante a peleja.
Terminamos o primeiro tempo com uma clara superioridade e duas chances incríveis desperdiçadas por Waguininho e Pedro Castro. Veio a etapa derradeira. Estávamos com um homem a menos – Wagner Leonardo havia sido expulso. Tudo andava meio morno no gramando quando o locutor do estádio anunciou o público presente: 15.449 torcedores. Minutos depois, sua voz voltou a ressoar pelos alto-falantes para noticiar a substituição no Bahia: “Sai Raí Nascimento e entra Jacaré.” Em menos de 20 minutos em campo, o estreante da noite marcou dois gols e sacramentou o início de jornada preocupante para nós, cruzeirenses. Um fantasma voltava fazer firulas por entre as estrelas do Cruzeiro do Sul.
No dia seguinte, ainda com a cabeça inchada pela derrota, olhei para o mar. Estava calmo e azul. As ondas se derramavam na areia de Amaralina com a mesma certeza de que as marés ruins não são para sempre.
A declaração de amor da torcida do Cruzeiro, dada ao final da derrota por 3 a 1, no Mineirão, naquela final contra o Atlético de Lourdes, não merecia o destino de ser meras palavras ao vento. A saga para estar junto ao escrete na estreia contra o Bahia, em Salvador, não poderia ser apenas promessa de amor eterno. Ambas tinham um sentido maior. Guardado para ser vivido aos poucos, rodada a rodada, ao longo da caminhada pelo retorno ao local de onde o Cruzeiro jamais deveria ter saído.
Ainda no calçadão da praia, após refletir sobre esse amor incondicional pelo Cruzeiro, olhei para a camisa azul estrelada, ainda suada da noite anterior, e a vesti. Levantei e segui para o Largo de Campo Grande para caminhar até o pôr do sol na Barra. “O Jacaré comeu a Raposa! Hahaha.” Após o grito da senhora, eu sorri. Cabeça erguia, suspirei pelo meu time e desci a ladeira. Não tirei mais a camisa até o final de 2022.
É com ela ao peito que rabisco essas últimas linhas de um dos anos mais importantes de nossa história. A pior página heroica está virada para sempre. Vem para os braços do seu povo celeste, 2023!