A noite de domingo na casa da Rua Doutor Lobo Filho, próxima ao Rio Pomba, na cidade de Cataguases, tinha gosto de fim de janta temperada com sons de futebol. Torcida eufórica; correria pelas pontas do campo; explosão de grito de gol na voz do narrador Jorge Curi, da Rádio Globo. Era assim que José Silvério ia preparando o coração do pequeno Dante para a paixão pelo Vasco, do rapaz que era uma dinamite dentro da área, Roberto.
Já durante as manhãs e tardes daquele início da década de 1970, a escola para Dante se espremia entre as pelejas do time de pelada da rua e do escrete infantil do Flamengo de Cataguases, clube amador da cidade. Sim, o coração moldado cruz-maltino pelo pai batia sob o uniforme rubro-negro da camisa 9, do center forward rompedor. Afinal de contas, naquela época, nas cidades da Zona da Mata só se torcia para os clubes do Rio de Janeiro. Os de Belo Horizonte, quase desconhecidos.
Tudo começou a mudar em 1974, na viagem de férias para Belo Horizonte, na casa do Vovô Beto, um velho ferroviário, que havia fincado morada no bairro da Barroca. Dante já tinha 8 anos e escalava seu “Vasco preferido” na ponta da língua.
Numa ocasião, ele foi questionado pelo avô: “Você torce para quem?” O menino fez uma pausa, olhou ressabiado para o pai e respondeu: “Para o Vasco.”
Sabedor da paixão do genro, Beto foi diplomático com o neto: “Um grande time! Tem o Dinamite, o Dé Aranha e tinha o Ademir Queixada.” Dante sorriu aliviado, como se tivesse acertado uma resposta da prova final do colégio. Tomou coragem e devolveu: “E o senhor, vovô? Torce para quem?”
“Cruzeiro.” A resposta deixou o garoto desnorteado. “Que time é esse? Cruzeiro?” Desta vez, foi o genro quem tratou de ser cortês com o sogro. Cutucou o garoto e emendou: “Que isso, filho! Cruzeiro do Tostão, Dirceu Lopes, Piazza, Raul.”
“O Cruzeiro vai jogar hoje contra o Flamengo, no Maracanã. Vai passar na televisão. A gente pode assistir.” A notícia dada pelo avô encheu Dante de expectativa, afinal, o tal Cruzeiro do Vovô Beto ia enfrentar o seu maior rival.
O neto viu a expressão de desalento no rosto do avô quando o Flamengo de Zico abriu o placar, aos 17 minutos. Mas era o Cruzeiro, e na volta para o segundo tempo, Dante assistiu um baile. Roberto Batata empatou. Eduardo Rabo de Vaca virou. Palhinha, center forward, como ele, sacramentou o 3 a 1 celestial. Um banho de bola e o fascínio por um ponta esquerda meio bailarino chamado Joãozinho. Ele acabara de “roubar” o coração do garoto que, até então, batia pelo Dinamite.
“Pai, esse é o Cruzeiro?”, perguntou, encantado. José Silvério confirmou com um aceno de cabeça respeitoso pelo maior time de Minas Gerais. Vovô Beto, pressentindo o que estava prestes a acontecer, com um sorriso vitorioso pregado no canto do rosto, se levantou e foi à cozinha pegar mais pipoca para o menino.
Dias depois, de volta a Cataguases, Dante foi encontrar os amigos para mais uma partida do time de pelada da Rua Doutor Lobo Filho. João Henrique (goleiro e dono da bola e do uniforme) chegou com uma bolsa. Abriu e jogou camisas brancas para os companheiros. “É do Santos?” Perguntaram. “Não! É do Cruzeiro.”
Lembrando do bailarino Joãozinho, Dante estufou o peito e vestiu pela primeira vez a camisa da Máquina Azul Celestial, o nosso Cruzeiro. Seu coração brilhou estelar. Passaram-se dois anos. A família de José Silvério se mudara para Belo Horizonte. As idas de Dante ao Mineirão com o Vovô Beto passaram a ser frequentes. Mas ainda sem coragem de revelar seu segredo. Até que veio a final do Mundial contra o Bayern de Munique, em 1976. Era impossível suportar mais tempo na clandestinidade.
“Papai, tenho uma coisa para contar. Não torço mais para o Vasco. Agora, sou Cruzeiro.” José Silvério franziu a testa, num misto de inconformismo e blasé. E daí por diante, depois que o menino abandonou o seu Vasco, ele passou a ter um segundo time: o Atlético de Lourdes. Uma vingança pueril e cheia de amor entre pai e filho que têm, até hoje, desfrutam, juntos, a mesma paixão por uma magia chamada futebol.