Jornal Estado de Minas

DA ARQUIBANCADA

O Cruzeiro está de volta aos trilhos



O primeiro jogo do Cruzeiro que Amarílio Ferreira dos Santos escutou lá do céu foi exatamente contra o mesmo adversário desta noite, o Grêmio. Não fez como realmente gostava: longe da TV e colado ao radinho para só ouvir a peleja. Isso porque uma semana antes daquele épico 1 a 0, no Ginásio do Horto, pela segunda rodada do Brasileirão, ele havia dado seu último suspiro, e após longos 12 anos de hemodiálise, descansou. Virou estrela.





Amarilinho nasceu em 20 de novembro de 1929, na cidade de Corinto, portal da entrada do grande sertão de veredas das Minas Gerais. Terra de trilhas e trilhos. Veio ao mundo com o corpinho enrolado em uma faixa imaginária de campeão. Verde, vermelha e branca, pois, três dias antes, a Società Sportiva Palestra Italia havia sapecado 5 a 2 no Atlético de Lourdes – gols de Armandinho, Ninão Fantoni (2), Bengala e Binga (contra). O time dos imigrantes italianos e da massa operária das periferias da capital mineira conquistava o segundo título de sua ainda pequenina história.

Para a maioria dos moleques de Corinto, assim que a idade das calças curtas passasse, o destino era labutar na Rede Ferroviária Federal, a antiga Estrada de Ferro Central do Brasil. Mas Amarilinho não teve o privilégio de esgotar a infância apenas nas brincadeiras. Já aos 13 anos, foi trabalhar na “Rede”.

Era 1942. Enquanto o menino – da pele morena curtida na ancestralidade e no sol sertanejo – suava por entre os dormentes, em Belo Horizonte, o Time do Povo Mineiro também sofria para se manter vivo frente a ofensiva do ditador Getúlio Vargas, que exigia o fim dos clubes ligados aos imigrantes. Naquele ano, para seguir viagem, da Resistência Palestrina, nascia um trem azul chamado Cruzeiro Esporte Clube.





Na década seguinte, a paixão pelo Cruzeiro ainda não tinha invadido o coração do moço, apesar do futebol já fazer parte de sua vida. Canhoto, era um exímio camisa 8. E foi driblando que ganhou o mundo. De Corinto, partiu para o Rio de Janeiro e, em seguida, os trilhos lhe levaram a Belo Horizonte.

Foi morar nas proximidades da Rede Ferroviária, no bairro Esplanada. Eram meados da década de 1950. O Cruzeiro vivia sua pior fase. Um curto período da história onde o futebol mineiro foi dominado pelo time das famílias ricas, o Atlético de Lourdes, e pela agremiação da aristocracia, o América. O moço ferroviário não se identificou com nenhum dos dois.

Não foi preciso nem esperar a chegada da Academia Celeste de Tostão e Dirceu Lopes, que, em 1966, arrebataria multidões de trabalhadores como ele. Amarilinho se fez cruzeirense eternamente apaixonado sem precisar de títulos ou supremacia desportiva.





Dali por diante, para Amarilinho, todos (ou quase todos) os trens seriam azuis. Junto de sua companheira, Santa, trouxe ao mundo a pequena Edilene. Cruzeirense e que lhe deu, décadas depois, a neta, Beatriz. Cruzeirense. Essa, filha de Alberto, seu genro, um... ATLETICANO.!?!?

Sereno. Educadíssimo. Nunca levantava a voz, nem mesmo para comemorar os muitos títulos do Cruzeiro – com a Copa do Brasil de 1993 sobre o Grêmio – ou para provocar o genro nas constantes derrotas do clube do bairro de Lourdes. “Alberto não deve estar bem hoje, né?”, dizia baixinho, com um sorriso no canto da boca.

A doença veio e no meio dela, a queda do Cruzeiro. Tudo doloroso até 2022. Já bem debilitado, não conseguia acompanhar nem pelo radinho a retomada do seu time. Era exatamente o genro (e verdadeiro filho) Alberto quem sussurrava os resultados da campanha avassaladora: “O seu Cruzeiro ganhou de novo.” Amarilinho sorria e seus olhos brilhavam. Mas pouco tempo depois de ouvir seu time de volta à Série A, partiu, no dia 15 de abril deste ano.

Hoje, pela Copa do Brasil, em boa fase, voltamos a enfrentar o velho freguês gaúcho, mas sem o nosso menino de Corinto. “Era um anjo. Bateu asas e voou. Mas, hoje, estará lá em cima. Olhando aqui para baixo e muito feliz com o seu Cruzeiro”, profetiza Alberto.

Farei questão de não assistir a peleja. Vou escutar pelo radinho, como nosso saudoso Amarilinho.