Os boêmios se derramavam pela noite da zona norte do Rio de Janeiro. No boteco, a poucos metros do Maracanã, a conta da bebelança chegou à nossa mesa. Junto dela, o pedido-choro do companheiro celeste Glad Leonel Jr.: ganhamos dois chopps de cortesia?
“Dois, não. Somos do Cabuloso! São quatro por conta da casa.” Surpresa geral. A resposta veio com um carregado sotaque carioca. E uma boa dose de “salve, simpatia”. Quando Tauan, o jovem garçom, nos estendeu as fartas canecas de colarinhos a escorrer, novo espanto feliz; no seu braço de pele bronzeada, o amor pelo Cruzeiro revelado em cinco estrelas azuis tatuadas.
Tauan nasceu ali mesmo no subúrbio do Rio de Janeiro, em 1998, onde ainda mora com os irmãos, no bairro Del Castilho. Uma vinda inteira de muitos perrengues. Da infância, guarda de bom a lembrança de viagem, em 2003, que iria lhe transformar para sempre.
Pela primeira vez, foi a Minas Gerais. Mais especificamente para a comunidade do Morro Santa Rosa, na periferia de Ipatinga, cidade do Vale do Aço. Lá morava sua avó, em um barraco equilibrado por entre o matagal da encosta.
Para o menino de cinco anos, a dificuldade não incomodava a magia do passeio. Sua pureza bastava para as brincadeiras de rua e amizades com a molecada nas partidas de futebol no campinho carcomido. Ali, ao ser perguntado para quem torcia, ficou sem resposta. Não tinha time preferido. Então, os meninos lhe mostraram duas camisas: a do Atlético de Lourdes e a do Cruzeiro. Nunca tinha as visto, mas quando Tauan olhou para o escudo com as cinco estrelas, falou: “É esse!”.
“Parceiro, ali, garotinho, eu me apaixonei perdidamente pelo Cruzeiro”, ele nos contou, enquanto eu e Glad tomávamos nosso chopp cortesia, já com a alma cruzeirense marejada de lágrimas de emoção.
O menino voltou cruzeirense para o Rio de Janeiro. Já se passaram 20 anos daquele dia. Ele nunca abandonou o time do coração, mesmo estando em outro estado; cercado de amigos flamenguistas, tricolores, vascaínos e botafoguenses e tampouco tendo condição financeira de acompanhar as partidas do Cruzeiro, nem mesmo pela TV.
Até quando foi morar um tempo no barraco da avó, no Morro Santa Rosa, quando os pais se separaram, Tauan não conseguiu. A casa não tinha TV, rádio e nem luz. Era iluminada por vela. Foi assistir as primeiras partidas quando se mudaram para a casa de uma família, onde sua mãe trabalhava em troca de moradia para ela e os filhos.
Alguns anos depois, de volta ao Rio de Janeiro, Tauan foi alimentando sua paixão pelo Cruzeiro. Encantou-se com a história dos trabalhadores humildes, como ele, que fundaram o Palestra Italia. Tomou ainda mais gosto pelo seu time amado.
De longe, comemorou títulos. Chorou duras derrotas, como a de 2009 para o Estudiantes. Alimentou a esperança de realizar um sonho: ir a um jogo do Cruzeiro e conhecer o Maracanã, pois, apesar de passar quase todos os dias perto para chegar ao trabalho, nunca tinha entrado no estádio. Em 2022, se encontrou com seu time de coração ao vivo. Nem a derrota por 1 a 0 para o Vasco atrapalhou o dia mágico para Tauan. Saiu do Maraca com o sorriso estampado e gritando “sou Cruzeiro até morrer”!
Há um mês, Tauan conseguiu do chefe – no Bar da Gema (no bairro Maracanã) – a folga para o próximo sábado, dia da peleja do seu Cruzeiro contra o Flamengo, no Maracanã. Os colegas de trabalho fizeram uma vaquinha e lhe deram a camisa oficial de presente. Quase tudo pronto para o segundo encontro com o seu Cabuloso. Quase...
Assim como centenas de torcedores, Tauan passou horas tentando comprar um ingresso para a partida. Misteriosamente, a carga destinada aos cruzeirenses desapareceu e agora, sabe-se – sem nenhum explicação digna do Cruzeiro – que estava bloqueada pelo próprio clube, e não pelo Flamengo.
O garoto de Del Castilho e do Morro Santa Rosa merecia entrar em campo junto com o time de Pepa – técnico que ele admira muito, no próximo sábado, para ser aplaudido pela Nação Azul. Ao meu novo companheiro de paixão pelas cinco estrelas, deixo o “muito obrigado” pela cortesia de ser o maior cruzeirense da gema desse Rio de Janeiro.