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Estado de Minas DA ARQUIBANCADA

Um extermínio silencioso no futebol brasileiro

"Nesta semana, se foi mais uma rainha popular das arquibancadas. Dona Maria José, torcedora-símbolo do Sport Recife"


13/09/2023 04:00
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Painel da torcedora Salomé no Barro Preto
A torcedora icônica do Cruzeiro, Maria Salomé da Silva, que morreu aos 86 anos, foi homenageada pela torcida com um painel, pintado por Matheus Aminadab, no muro do clube no Barro Preto (foto: Ramon Lisboa/EM/D.A Press - 12/10/19)


Uma das espécies mais fantásticas do ecossistema do futebol está entrando em processo de extinção. Para a tragédia da narrativa poética e popular do jogo de bola, estão morrendo – sem perspectiva de renascimentos – os torcedores-símbolo das arquibancadas.

Indivíduos capazes de colocar a própria existência em segundo plano quando o verbo é “torcer”. De encarnarem camisas como segunda pele. De transformarem as linhas da costura dos escudos em artérias ligadas ao coração.

Nesta semana, se foi mais uma rainha popular das arquibancadas. Dona Maria José, torcedora-símbolo do Sport Recife. Mulher pobre, negra, interiorana, adepta aos degraus de concreto grosso e áspero dos estádios brasileiros. Foram 98 anos de total entrega ao seu amor maior.

Quebrou paradigmas. Vestida e pintada de vermelho e preto, do cabelo aos pés, ela conquistou seu espaço e o respeito, mesmo em uma época retrógrada quando mulheres em meio a multidão de marmanjos nas arquibancadas era motivo de preconceito.

Órfã, vítima de violência física e racismo por toda a vida, a Dona Maria do Sport nunca se deixou abalar. Sobreviveu para lutar pelos direitos de sorrir, de torcer, de gostar de futebol, de ser apaixonada pelo seu Leão.

"Quando eu morrer, quero sair do Sport, ir em um caminhão dos Bombeiros, passar pelo Palácio do Governo até chegar no cemitério. E quero ser enterrada na frente, não é atrás não. Porque quando o negro morre, enterram lá no fundo. E eu tenho muito orgulho da minha cor", disse ela, em uma entrevista para a Rede Globo. Sua profecia se concretizou no último domingo.

Durante uma prosa sobre Dona Maria José, meu amigo e companheiro de crônica esportiva Fernando Rocha me recordou de outros ícones das arquibancadas nordestinas, como o lendário Zé do Rádio, também do Sport.

Cruzeirense de estrelas cravejadas na alma, Fernando Rocha morou e trabalhou por cinco anos no Recife. Tornou-se o torcedor-cronista-símbolo da união entre as torcidas do Sport e do Cruzeiro. Durante as coberturas das pelejas do time pernambucano, bastava se aproximar do alambrado para a Torcida Jovem entoar o cântico “Sport, Cruzeiro, amizade o ano inteiro”.

O Cruzeiro também sempre foi um celeiro de torcedores-símbolo vindos do povão. Assim como o Sport, teve em uma mulher pobre, interiorana e batalhadora a sua expressão máxima: Maria Salomé, a maior torcedora do mundo. “Se o Cruzeiro cair, eu morro.” Como dói relembrar dessa sua profecia.

Junto à Salomé, na história centenária do Palestra/Cruzeiro, houve outros e outras tantas. Como a cruzeirense negra e periférica que era a nossa torcedora-símbolo na década de 1950, ainda no Estádio Independência, antes do advento do Mineirão.

O saudoso Vágner, da Torcida Jovem, precursor da resistência contra as agressões homofóbicas criminosamente implementadas em Minas Gerais pela Turma do Sapatênis, ainda ao final da década de 1970. O maestro Aldair Pinto, com sua charanga que inspirou o surgimento das baterias das Organizadas. Citando apenas alguns para simbolizar os inúmeros torcedores-símbolo do Cruzeiro.

Em 2023, completa-se uma década do boom de campos de futebol transformados em “arenas” no Brasil. Um modelo moderno e confortável, por um lado, mas elitista e segregador, de outro. Para os amantes da mercantilização do esporte do povo, pode ser apenas uma mera coincidência. Para nós, poetas sonhadores, jamais. Afinal, com elas, as arenas, também vieram as mortes dos setores populares – como as “gerais” – e, consequentemente, dos ingressos com valores acessíveis para o trabalhador comum. Classe socioeconômica de onde emergiram quase todos esses torcedores-símbolo do futebol brasileiro.

Não são apenas os craques e ídolos que estão em processo de extinção no futebol brasileiro. A poesia do torcer também sangra com a partida de nossas Donas Marias.


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