DIÁRIO DA
QUARENTENA
O lugar do outro
Mary Arantes
empresária
É indescritível a magnitude do que temos vivido. Num futuro muito próximo, seremos testemunhos desse tempo, do confinamento, do exílio domiciliar, do tempo de luta contra um inimigo invisível.
Quem gostar de escrever que o faça, quem for criador, crie, quem for contador de histórias que conte e grave, tudo isso será farto material para estudos e futuros documentários. Registrem suas emoções.
Imagino o que farão com os dados de hoje os filósofos, economistas, cientistas, sociólogos e antropólogos, quantas análises fabulosas, ou não, surgirão desse período.
Dados alarmantes, gráficos inesperados!
Angústia, apreensão, espanto, depressão, riso, piadas, choro, tudo isso faz parte do processo de elaboração do que temos vivido. Normal que estejamos assim. Fomos pegos de surpresa, sem nenhum manual de instrução. Cada dia virá com seu novo conteúdo, com seu Kinder Ovo e sua surpresinha, nem sempre agradável.
Ficar em casa, mais do que nunca, me faz refletir sobre a certeza absoluta de que tudo o que virá será de dentro pra fora. Casa como metáfora do nosso ninho interior.
Tenho procurado ler e acompanhar Instagrans, que me contam realidades diferentes da minha, como o do Lá da Favelinha. No primeiro vídeo que gravaram sobre o coronavírus, falam da quarentena como privilégio de classe. Falam da realidade da favela, do significado da palavra aglomerado, local onde famílias vivem amontoadas em quartos, com risco de contaminação social muito maior.
Já parou pra pensar nas pessoas que trabalham no comércio informal? Aquelas que têm como única fonte de renda a exposição ao corre-corre das ruas? Como vai ficar o vendedor de pipoca, o engraxate, o baleiro, pessoas que precisam de passantes, se a cidade está deserta?
Em seu Instagram, Djamila Ribeiro, filósofa, escritora e ativista, nos fala sobre o tema de uma reportagem: “Doméstica idosa que morreu no Rio cuidava da patroa contagiada pelo coronavírus”. Será que essa pobre mulher, contaminada pela patroa que chegou do exterior, não teria um nome? Até quando vamos continuar sendo excludentes?
Telma Sepúlveda, em um de seus posts com mensagens diárias, diz que o endereço mais difícil do mundo é o lugar do outro! E é nele que temos que chegar. A dor da China, da Itália, tem que doer em mim. O ebola e a fome da África têm que doer em mim. A dor de milhares de brasileiros sem plano de saúde, e que terão de ser escolhidos entre os que serão entubados ou os que morrerão, tem que doer em mim. Tem que doer em mim um país onde arte, cultura, educação e saúde são relegadas a segundo plano. E doer em mim significa lutar, gritar, escrever, falar, ir às ruas, fazer cartazes.
Nossos corpos são bandeiras ambulantes, porta-vozes do nosso querer e dos que não têm vez!
''Ficar em casa me faz refletir sobre a certeza absoluta de que tudo o que virá será de dentro pra fora''