Você sai o menos possível. Por sorte, nenhuma urgência. A não ser o desejo de que isso acabe logo. Que o mundo encontre uma vacina. Nenhum familiar com o vírus. Nem tudo nos seus dias é COVID. Você respira bem. Você não ignora os milhares de mortos em todo o mundo. Você leu nalgum lugar: quanto mais o isolamento social funcionar, mais ele vai parecer desnecessário. Em geral você fica na janela, vendo tudo entrar pela janela. Fica vendo o vírus. Faz pesquisas. Fica vendo as chuvas fecundantes.
As formigas, os vendavais, os elefantes. Fica velejando no sal do mar, navegando. Você vai pelo perfume dos bosques, pela onça rosnando, pelo espetáculo do sol. E aí um coelho foge, o cordeiro pra degola engorda. E o porco pendurado pela pata. E os desmatamentos, a temperatura do planeta esquentando.
Uma galinha que cisca e corre. Uma onda gigante, o tornado, a tormenta. Súbito você vai pro clipe de um cantor, pra um vídeo de humor. Você pensa que deve ter uns 20 tipos de pesticidas em você. Você fica na janela, entrando na janela. O cara que não pensa chegou ontem e já quer sentar na fenda, na entrelinha. Fica na tua que eu fico na minha. Agora a galinha corre sem cabeça. Agora uma bala atravessa o crânio de um boi. Você assiste a teses, testes. Você assiste ao pânico, ao horror. E se é o fim do gênero humano? Se de um dia pro outro toda a humanidade desaparece sem deixar vestígio?
Você segue o rastro. Escuta de um economista algo sobre o remédio do dinheiro. Escuta falas sobre o veneno do mercado. Sobre a corrida de assassinos, sobre a milícia no poder. Sobre o tráfico de armas. E o dinheiro da festa. E a besta no meio do campo de um jogo perverso que faz o cidadão desaparecer. Você só acredita mesmo vendo, você não acredita. Você está respeitando o distanciamento social. As ruas estão desertas, as ruas não estão desertas. Você quer dormir em paz, a paz está sombria. Pronto, você perdeu o sono, a noite morrerá. Você emudece, engole murmúrios, acrescenta lágrimas à cara, soma lágrimas às lágrimas, os ossos se enregelam.