Jornal Estado de Minas

PANDEMIA

Em quase sete cenas, Cynthia Paulino fala dos dias de isolamento

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O isolamento em (quase)
sete cenas

Cynthia Paulino
Atriz

Vamos começar do começo. Ahã... qual deles. Vocês sentem isto, como se o tempo estivesse voando e a gente não sabe mais que dia é, que horas são, é o tempo todo um tão de “já”? Bom, mas vamos lá, vamos pensar em cenas, e elas nem precisam obedecer a nenhuma ordem. Por que, né? Tá tudo coisado, então fluxo, deixa fluir, vou escrever como se não houvesse amanhã.



Cena 1 – Final do ano passado, todo mundo estava fazendo mil planos para o futuro e eu só sentia que devia viver aquele “agora”, nenhum plano me vinha à cabeça, era isso, nada, nadica, nada mesmo. Nenhuma sensação ruim, nenhuma cobrança, não, eu só não conseguia “fazer planos”. Bom, entra o ano, mesma coisa. Uma sensação de “fica quieta” no peito, e ao meu redor o povo todo cheeeeeeeio de mil projetos, “e aí?” pra cá, “e aí?” pra lá. E eu...

Cena 2 – Notícias que no final do ano começaram a chegar foram chegando e chegando e bum! Apocalipse now! Fiquem em casa, isolamento social. Climão The walking dead to-tal. Já vou admitindo que me isolo socialmente o mais que posso há anos, então não é nenhum esforço ficar em casa, a bomba vem é das notícias de fora, aí ferra tudo. Mas eu, marido, filha (surtaaaaaaaaada, “e meus amigos e meus botecos e minhas festas???”), nossos gatos, casa-ninho-útero, plantas, livros, minhas costuras... Só que tem tudo acontecendo lá fora e a cabeça começa a ferver, fritar, o povo simplesmente está se fu para as recomendações, vizinhos fazendo festinhas, lives-lives-lives e cada notícia que chega é um murro no estômago e agradeço por não ser uma mutante com superpoderes ou esse pessoal falando e fazendo mierda estaria em apuros.

Entre-cenas – O que fazer, Jesus-nossa senhora-saint german e todos os anjos-arcanjos e seres de luz, para não entrar em estado crônico de “ó, Deus, estamos todos fu”???

Cena 3 – Na primeira semana, fui produtiva. Muito. Exageradamente. Socorro. Até demais. Cortei mais de 500 quadradinhos 10x10 de tecido para fazer patchwork. Olhava para o calo na mão e me sentia viva! Costurei e costurei e costurei, podia ser uma personagem presa na torre em uma estória de fadas, tretretretretretretretretre faz da máquina e vai crescendo o pano pano pano... enfim, fiz uma colcha, farei um vestido longo para mim e outro pra minha mãe. E ainda tenho mil quadradinhos de tecidos esperando pelo tretretretretretretretretre... ah! E máscaras, claro, muuuuuuitas, pra doar e pra família e amigos e aí, pow, a máquina para, nãaaaaaaaaaaaaaaao! Fico sem a minha tretretretretretretretretre por três loooooooongas semanas. Tentei fazer máscaras a mão, e aconselho: não façam, o tecido é duplo e os mil furos no dedo, olha... melhor não.



Cena 4 – Chamo nosso apartamento de kinder-ovo, tudo apertadinho, móveis-nós-livros-muitos livros e mil coleções, caveiras, bonecas, sacos de retalho, lã-linha-lápis de cor e e e – sou acumuladora mesmo, me julgue, enfim cada um com suas coleções. Maaaaaaaaaaaas temos três pe-que-nas varandas, e alguns vasos de plantas. Então o espaço entre elas me fez começar a plantar. “Cabe sim”, disse minha decoradora interior. Furou a forma de bolo? Plantei. Olha, um balde vazio, plantei. Uma lata de bijouteiras? Plantei e fui plantando, plantando, plantando. Resultado: filha e marido querendo tomar sol na varanda. Impossível. Não há espaço pra isso. “Dá pra tirar os vasos?” Mas é claaaaaaaaaaro que não, estão loucos??? As plantas sentem, seus insensíveis!

Cena 5 – Sou professora de teatro, há anos, e passamos agora por um desafio antes inimaginável. Aula de teatro é suor, contato, gritos e sussurros, olhos nos olhos e de repente. Olha, não gosto e nunca gostei da minha imagem gravada. Para escolher uma foto deleto 100 outras, e do nada tô aqui me vendo em vídeo. E cai internet, e atrasa o som, e aluno chega atrasado para a aula, e tá todo mundo muito sensível (inclusive a professora, né?) e mil dedos e mil neuras e mil novas formas de fazer diferente o que sempre fiz no ao vivo e a cores. Eita, dá-lhe aplicativo de meditação, “respire, relaxe, seu coração é puro, deixe ir”. Ir pra onde cacete? – pode falar cacete? Sei lá, fala piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii, e tem que ficar em casaaaaaaaaaaaaa, respira, Cynthia, res-pi-ra. O incrível? Está acontecendo, as aulas, o grupo, as cenas, as coisas vão se encaixando e isso, olha, arrepia. A arte é aquela florzinha e nasce no meio da pedra, sabe? Ela nasce. Assim é.

Cena 6 – Comecei a fazer cursos de línguas. Aplicativo, “de grátis”. Francês, italiano, inglês, espanhol. No início tuuuuuuuuudo ao mesmo tempo, hoje foco no espanhol, um dia volto a fazer os outros... Olha, não adianta essa hipervontade de usar ese tiempo para todo al mismo tiempo, tu cabeza está exhausta. Casa, cozinha, o ritual desgastante de limpar tudo que chega de fora, convivência, os humores, as discussões desnecessárias com minha filha, o de dentro e o de fora, o meu dentro, as notícias, os gráficos, as mortes, as fake news, as pessoas fakes, os irresponsáveis egoístas piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii aqui vai o pi mesmo porque esse palavrão eu sei que não pode. He estado en casa desde el principio, no sé cuántos días, tenho brincado muito disso, hablar misturado nesse portunhol, mas então coloquei o pé na rua só até o portão pra pegar uma encomenda e sim, tenho medo de como vai ser quando tiver que sair de novo. Não me encontro com minha mãe e minhas irmãs por esse tempão todo, mas nos falamos todo dia por chamadas de vídeo, coisa que até então jamaaaaaaaaaaaaais tinha feito. Minha mãe está sozinha e alguns dias fica muito pra baixo, então começamos a fazer sessões de colorir, com esses livros de colorir para adultos. Olha, esse é um ritual que talvez fique disso tudo. Colorimos, rimos, cantamos, mafiamos, em alguns momentos fazemos silêncio, e juntas, como é poderoso isso. Converso com alguns poucos amigos pela chamada de vídeo também, trocamos memes e mensagens, o longe é perto, é só a gente assim escolher. E vamos, juntos, cada um tentando ser e fazer o seu melhor, seguindo, sentindo. Em alguns momentos do dia, explode um choro, deixo sair. Em outros, sento e escrevo, vejo um documentário, escolho filmes bobos e séries para rir. Em outras horas, durmo fora de hora, ronrono como aprendi com os gatos, me espreguiço, volto para o faz isso faz aquilo e daqui a pouco paro. E rezo, muito, por mim, pelos meus, por todos. Quem for luz é bem-vindo, sempre, já o que não é luz aqui não fica, siga o seu caminho, que aqui só vibra amor e coração. E assim é.

A cena 7? – Depois a gente continua.