Jornal Estado de Minas

COLUNA HIT

Dolly Piercing: 'Definitivamente, não estamos sozinhos'


Diário da quarentena


Dolly Piercing
Drag queen, cantora e atriz

Que me desculpem os materialistas deste século 21, mas vou furar a quarentena abordando de forma holística uma percepção que já se desperta em nossas conversas, inquietas cabeças contemporâneas.



Nada é por acaso! Tenho constatado, nessa minha existência, que certos assuntos, situações e acontecimentos vêm para transformar mesmo. Se tenho convicção de uma comprovação científica a respeito desta sensação, direi que ela é mais empírica do que cartesianamente aprovada. Meu estilo de vida, por diversas razões restritivas, sempre foi muito parecido com a situação coletiva agora enfrentada por todos. Reclusão, falta de prazeres consumistas e oportunidades, ter que me virar com pouco e a preocupação de contrair uma doença contagiosa e mortal não são novidades pra mim. Nesse quesito, já entro preparada – e calejada – na quarentena da COVID-19.

Só que, infelizmente ou felizmente, se pensarmos que essa é uma oportunidade primordial para a transformação profunda das relações humanas, a pandemia nada mais é do que uma forma de reavaliarmos questões muito íntimas, individuais, que reverberam no coletivo.

Muitos estão passando por dificuldades existenciais que superam a preocupação com a temida extinção humana, o que, ao meu ver, não acontecerá. A história mostra que gerações anteriores superaram moléstias que pareciam trazer o Apocalipse anunciado.



Pois bem, estou nesta quarentena rodeada de problemas ligados a questões emocionais, fruto de um desligamento afetivo de 14 anos, embora não desejasse que ele ocorresse. Para mim, a quarentena veio como uma forma obrigatória de lidar com a autossuficiência.

Parece estranho e paradoxal, neste momento em que precisamos uns dos outros, que meu tema de evolução seja uma preocupação extremamente individual. É que, como artista, preciso estar bem comigo mesma para brilhar e assim contagiar as pessoas, contribuindo com elas.

Quantas pessoas não têm a noção de que para que as coisas deem certo e possamos favorecer o todo, parte-se, primeiramente, do alicerce da autoconsciência. Estou tendo de aprender duramente que, em meio ao caos externo, necessito voltar para dentro de mim mesma, para as minhas questões mais cabulosas. No momento oportuno, amadurecida, poderei genuinamente servir ao próximo.



Definitivamente, não estamos sozinhos. Não cito apenas amigos fidedignos e a família zeladora de amor, mas uma força inteligentemente incompreensível que nos acompanha e acalenta. Quanto mais pessoas reformuladas, mais se fortalece a conexão que nos liga em prol da evolução. E haverá muitas perdas para isso. Perdas materiais, emocionais e humanas.

A quarentena é uma fase, o que estou passando é uma fase, o que você está passando é uma fase, o que nós passamos é uma fase. Como em toda fase, em todo ciclo, há o momento de começar, aprender e terminar.

Tudo passa, né mesmo?