Jornal Estado de Minas

COLUNA HIT

Fabiane Pereira: 'Estamos mesmo preparados para este novo tempo?'

Conteúdo para Assinantes

Continue lendo o conteúdo para assinantes do Estado de Minas Digital no seu computador e smartphone.

Estado de Minas Digital

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Utilizamos tecnologia e segurança do Google para fazer a assinatura.

Experimente 15 dias grátis

Houve um tempo em que havia bailes funk na cidade do Rio de Janeiro. A interrupção deles não vai pra conta da pandemia, mas da criminalização desse gênero musical pelo Estado, legitimada por nossas elites e classe média preconceituosas. Mas quando havia baile funk no Rio, as preparadas eram aquelas mulheres prontas pro que der e vier. Durante o baile, a mulherada cantava a plenos pulmões o refrão do Bonde do Tigrão. Depois desses três meses apocalípticos, passei a me questionar: somos, mesmo, uma geração de preparados?.


       
 Conversando com amigos – via Zoom, para manter o isolamento social –, percebi que (quase) todos estamos tateando no escuro para virar gente grande. Sabe-se lá o que quer dizer, hoje em dia, essa expressão “gente grande”.

Antes da pandemia, palavras e expressões significavam o que significavam. Agora não. Os dicionários, assim como cada um de nós, ganharam outras camadas e novos conteúdos, obrigando todos a se realfabetizarem.

Do ponto de vista tecnológico e, digamos, de habilidades específicas, somos uma geração bem preparada. Porém, se olharmos por outro prisma, do ponto de vista humano, estamos completamente entregues e despreparados. Não sabemos lidar com as nossas próprias frustrações.



Há uma geração – entre 30 e 40 anos – que teve muito mais oportunidades do que os pais. Classe média que estudou em bons colégios, fala fluentemente outros idiomas, viajou bastante se beneficiando da estabilidade econômica, com acesso completo e irrestrito à cultura e à tecnologia.

Crescemos achando que todos os méritos eram oriundos de nossa genialidade, que morávamos num país estável economicamente e que era eterna essa bolha, quase alucinógena, “de que a vida é fácil e só depende de nós”.

Aí veio a primeira crise econômica (e política) deste país de Terceiro Mundo (não é complexo de vira-latas, é realidade pura) no período “adulto” de nossa existência, na fase em que toda receita que nos sustenta vem do próprio trabalho (excluo, por motivos óbvios, os herdeiros).



Aí vieram 2013, o golpe, Temer, uma avalanche de fake news, Bolsonaro e uma crise sanitária impensável transformando a realidade ruim em outra ainda mais insalubre. Ao perceber que não havíamos aprendido a criar a partir da dor e da escassez, nosso mundo caiu.

Numa entrevista com o rapper, apresentador e empresário Emicida, que está no ar no Papo de Música, meu canal de YouTube, ouvi dele que “a escassez e a abundância moldam muito a forma como a gente vê o mundo”. Os privilegiados da minha geração não aprenderam a ver o mundo sob a ótica da escassez. A escassez dos privilegiados é abundância se comparada a recortes de raça, gênero e classe social. Poderia problematizar aqui que grande parcela da minha geração esperava encontrar no mercado de trabalho a continuação dos “mimos” de suas casas. Mas não farei isso, porque aí o buraco é (muito) mais embaixo.

Depois de três meses trancada em casa (olha o privilégio!), trabalhando sentada na confortável poltrona da minha sala, ora lavando frutas e legumes orgânicos que chegam por delivery, ora fazendo uma call, minha ficha caiu de vez. E, aqui, “de vez” quer dizer “pra sempre”. Repito algo importante: estou em casa. Se você não deu tanta importância para isso, é porque também está em casa.



Em casa. Muito provavelmente, todos os seus amigos também estão em casa. Exceto médicos, enfermeiros ou donos de supermercados. Não há conquista individual se não houver garantia das conquistas coletivas. Para que uma conquista seja, de fato, conquista é preciso que todos nós tenhamos as mesmas condições de disputa. Deixar de acreditar em meritocracia neste país de desigualdades abissais é o início para qualquer conversa.

Meu pai dizia que tudo o que ele fosse incapaz de me ensinar, a vida se encarregaria. Confesso que compreendi esta verdade absoluta meio tarde. Precisou de uma pandemia para que eu compreendesse – sentido lato sensu – que até sentir frustração é privilégio de raça, gênero e classe. Uma geração dopada, incapaz de (con) viver com as angústias básicas que toda limitação humana provoca, alimenta a necropolítica que está sendo implementada.

É preciso, de uma vez por todas, aprender a ler nas entrelinhas. Muitos com quem converso ainda acham que ralar é coisa de pobre. Desprezam o esforço. Preferem a vocação. O berço. O “nasceu pra isso”. Ninguém nasce para isso ou para aquilo. As pessoas se tornam o que querem (obviamente, as mais preparadas).



Estar preparado pro que der e vier é, antes de tudo, abrir mão de seu privilégio e olhar para o próximo. Saber se reinventar é valorizar a mulher que te ajuda na criação dos filhos enquanto você trabalha fora de casa. Compreender que o mundo de hoje é completamente diferente daquele de janeiro de 2020 é ampliar suas perspectivas.

O coronavírus é cruel, mas não é democrático, como estão dizendo. Ele vai levar muita gente, mas poucos de nós, os preparados. Admitir isso é se aproximar da empatia. A vida perdeu a garantia e está clamando para que nos preparemos de verdade.

Você já está preparado?