Jornal Estado de Minas

MEMÓRIAS

As lágrimas do meu sorriso

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Diário da quarentena

O mestre-sala da minha saudade
 
Rodrigo Vellozo
Músico, filho do compositor Benito di Paula


Quase consigo saber o que você iria estar sugerindo para eu assistir nestes dias de isolamento. Imagino se estaríamos jogando videogame. Até peguei uma conjuntivite no início da quarentena, procurando um videogame que achei que você pudesse ter deixado aqui. Não deixou, ficou no Rio. Acabei encontrando fotos, lembranças e muita poeira. Faz pouco tempo, mas já tem poeira. Precisei ir ao oculista. Meu olho esquerdo só melhorou completamente na semana passada.



Ainda não tive coragem de ver Mulheres do século 20. Você sempre me mostrava a cena final, mas me dizia que precisava ver o filme inteiro. Todo dia, vejo se ainda está no serviço de streaming, mas tenho medo de assistir sem você aqui. Assisti a Guerra fria... Que filme lindo! Você tinha toda a razão. Aquela atriz é mesmo uma cantora espetacular. Mas o final... Você deveria ter me dado spoiler, porque fiquei dias sem dormir depois de assistir.

A vida invisível, não me lembro se você viu. Mas eu, realmente, não deveria ter assistido. A história das irmãs que se separam... E a cena no final, com a Fernanda Montenegro sentada sozinha, nunca mais vai sair da minha mente. E ela foi sua aluna de inglês. Que orgulho! Tem coisas que não vou mais poder assistir, né? Já aceitei isso. Meu excesso de sensibilidade.

Fiz um disco para você, cara. Acho que você vai gostar! Tem uma música, Hiato, que me dá esperança. Porque hiato não é fim, né? O disco tem a sua cara. Você certamente iria curtir demais os arranjos e o instrumental. Lembra um pouco Radiohead, Max Richter. Tem cordas, cavaquinho, guitarras, baixo acústico, sintetizador... E é meio que um disco de samba. Sem percussão! O título é O mestre-sala da minha saudade.



Você dizia que eu devia gravar minhas músicas. Aí compusemos um monte para você. O pessoal todo que gravou comigo é muito especial, você ia se amarrar. Fizemos um clipe no último dia antes do nosso isolamento social. Num lugar que chamam de “cemitério dos carros alegóricos”. Locação incrível! Talvez nem tenha carnaval no ano que vem; se tiver, deve atrasar... Aliás, estranhamos gravar clipe sem você. Estranha demais a vida sem você. Ainda não sei se vou conseguir voltar ao normal.

Meu pai gravou uma música comigo pra você. Ele quase não fala no assunto, quando fala fica muito triste, então acho que a música ajudou bastante. Chama-se Lágrimas no meu sorriso. É triste, mas é tipo um papo nosso mesmo. Um desabafo pro meu pai. Ele ficou superorgulhoso de poder fazer.

Ele é do grupo de risco, né? Então, eu e Carol estamos aqui com ele direto. Desde março. Começamos a fazer umas lives pelo Instagram e ele tá curtindo muito. Eu também estou. Claro que se você estivesse aqui, teria um enquadramento bem mais legal, um som bem mais legal. Bom, seria tudo mais legal.

Ah, acho que o Trump vai perder, hein? Certamente, você iria gostar dessa notícia.

Enfim, só pra dizer que estamos bem aqui, na medida do possível. E com saudades. Seu aniversário foi um dia bem difícil. Ainda é difícil conseguir dormir.

Eu te amo, meu irmão.