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Estado de Minas Diário da quarentena

À espera de um segundo mundo novo, sem terrorismo e sem vírus

Pedro Rogério, da Academia Mineira de Letras, conta suas expectativas para o futuro


19/08/2020 04:00

Pedro Rogério Moreira
Membro da Academia Mineira de Letras
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Nunca fui um sujeito organizado. Nunca tive “uma cabeça bem mobiliada”, como diz um amigo baiano sobre as pessoas certinhas. Agora mesmo, depois de escrever essas duas linhas precedentes, já interrompi a escrita dessa crônica por três vezes. A primeira para atender o telefone, a segunda para apreciar no WhatsApp um vídeo pornô (eles têm se multiplicado na pandemia), a terceira para acudir meu gato que reclamou não ter grãos no seu vasilhame aqui do escritório. O telefonema merece registro: era o dentista informando que recebeu a tomografia que fiz há dois dias e, graças a Deus, não tenho nada. Mas sua informação acessória é espantosa: nos últimos três meses, quadruplicaram os casos de trincamento de dentes. Temos comido mais e mordido com raiva. Bala perdida da pandemia.

Sempre trabalhei em empresas muito bem organizadas, mas poucas vezes compartilhei com a minha secretária os horários a cumprir. Era a cabeça mal mobiliada. Me ferrei, atiça-me a lembrança um volume de Carlos Drummond à minha frente: perdi a sessão da Câmara dos Deputados em homenagem ao centenário do poeta. Mineiro perde a poesia, mas não perde o trem: jamais faltei a uma reunião de trabalho. Grandes coisas! Era o mínimo, seu Pedrominha! Minha biblioteca é desorganizada. O Eça está ao lado de um livro de botânica. Tem gente que organiza até adega: português pra cá, italiano pra lá, francês na prateleira de baixo. A minha assemelha-se a uma feira de Istambul, e a primeira garrafa que agarro é a que vai pro papo. O guarda-roupa não, é organizadinho pelas outras duas mãos que há mais de 40 anos tenho grudado no meu corpo, como a deusa hindu. Jamais abrirei o gaveteiro dos pijamas se quero vestir uma bermuda.

Já os papéis pessoais, ah! Sabe aquela certidão de casamento que você precisa dela com urgência para selar a venda do apart-hotel no Bairro dos Funcionários, desvalorizado em 50% pela recessão da pandemia? Pois é ela mesma. Que aborrecimento a solicitação ao cartório do Rio! E você solta impropérios para todo lado, mas nunca se culpa da cabeça mal mobiliada que o faz esquecer que o documento está guardadinho na pasta verde.

De modo que minha desorganização não fez da pandemia um pandemônio. Eu estava bem equipado. A peste me poupou até de aborrecidas ações cotidianas, como ir ao mercado, à padaria, à farmácia. O delivery cuida do pão de cada dia e da pasta dental. O computador, o smartphone, o laptop tornaram-se o centro da vida para mais de 1 bilhão e 200 mil pessoas, li outro dia. Não preciso mais ir de terno e gravata às repartições de Brasília para cuidar do interesse dos meus chefes: falo com os burocratas por videoconferência no meu home office.

O aquartelamento obrigatório para evitar as consequências da terceira guerra mundial, gerador do sentimento de claustrofobia, pouco me afetou: eu já havia abolido as flanadas noturnas, nas quais uma cabeça mal mobiliada pode causar problemas na vida privada, como me tem mostrado a leitura do sábio Balzac na sua Comédia humana, que adquiri num sebo para enfrentar o longo inverno do vírus. Sem flanações, obtive a harmonia doméstica e, tendo feito de casa meu próprio bar, economizei.

Desgraçadamente, milhares de brasileiros não vivem a boa vida deste cronista. Eles se arriscam diariamente no transporte lotado, na convivência no trabalho e no intercâmbio afetivo com suas famílias. Na falta de uma vacina e de hospitais acolhedores, e também na ausência de um líder que lhes dê esperança – porque esperança é um remédio muito bom –, torço para não lhes faltar um São Francisco de Assis, o protetor dos humildes.

Dizem os filósofos, que pululam agora na televisão (tanto quanto os vídeos pornôs nas redes sociais), que o mundo será outro após a pandemia. O mundo está mudando muito mesmo. Já foi novo a partir de 2001, quando apareceu o vírus do terrorismo planetário. O século que então se inaugurava acabou na destruição das Torres Gêmeas de Nova York. E o século que se iniciou com esse novo mundo sob o medo do terrorismo durou apenas 19 anos. Terminou no carnaval de 2020, dizem os infectologistas. Que venha então o segundo mundo novo em 20 anos, sem terrorismo e sem o vírus. Amém.

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