Querido Helvécio,
Deveria começar lhe perguntando se está tudo bem, mas me falta coragem para tal pergunta. Na verdade, assumo meu medo de receber como resposta um “tudo ótimo”, que me deixaria horrorizado.
Quero lhe pedir mil desculpas, não consigo atender ao seu gentil convite para enviar um texto para publicar na sua coluna como um diário da quarentena. Não consigo... Falta gás, inspiração... e talento tenho pouco.
Me encontro encalhado dentro de mim, lá fora já ultrapassamos 100 mil mortos e muito em breve esse número será passado bem distante, diante dos índices de milhão...
Muitas vezes, durante o isolamento, fui acordado por um VRUMMMM... VRUMMM.... VRUMMM
Não sei imitar bem o som de vibração do celular em silencioso.
Algo assim... BTRUMM... BTRUMM... BTRUMM..
"Ter qualquer ideia sobre o futuro virou jogo de adivinhação e isso me paralisa. Uma sensação de que, uma vez terminado o isolamento, faltará coragem para sair de casa"
E depois de um salto, um pulo, vejo que mais uma vez perdi a hora. Correndo para vencer o tempo em dias cada vez mais curtos... estranhamente bem mais curtos!
Jurei muitas vezes:
Hoje faço tudo que ficou pra trás... incomoda isso de não honrar compromisso. Hoje cumpro. De qualquer jeito...
Vou na onda da monja, inspirando devagar e expirando forte de uma vez. Soltando tudo direto. Sem releitura... Muitas ideias. Tantas que é o mesmo que ter nenhuma....
Segui os ritos e não consegui. Aquele roteiro para um curta já foi. O conto ficou bobo... sem final. Poesia, desisto... não sei fazer. Força... inspira e vai! Muitas anotações, rascunhos soltos na bancada...
Tenho hoje vários livros abertos, com a leitura iniciada. Comecei a quarentena me organizando para ler e reler várias obras, colocando em dia a leitura, e agora tenho que assumir outra lógica. Criar uma sequência organizada e ir lendo trecho de um e outro, formando uma continuidade que, no final, fará sentido, como um só livro com a soma de todos os títulos.
Um livro com o enorme título:
Queda do céu grande sertão filho de mil homens prólogo ato e epílogo essas pessoas mulheres empilhadas amarelo marrom coriolano memorial do convento histórias mestiças rio das flores o oráculo da noite a vida pela frente escravidão.
Ter qualquer ideia sobre o futuro virou jogo de adivinhação e isso me paralisa. Uma sensação de que uma vez terminado o isolamento, faltará coragem para sair de casa.
Recebo uma mensagem, quase como um grito de socorro:
Só morre gente do lado de cá, meu Deus!
E para isso não adianta bater todas as panelas na varanda...
E nossos povos indígenas? Os verdadeiros donos da terra... sendo dizimados mais uma vez.
Mil desculpas! Não consigo!
Resolvi fazer esta carta e lhe enviar de primeira, sem reler e correr o risco de deletar tudo, como tem sido até agora. Prometo que farei, tão logo alguma luz apareça capaz de me mover saindo desse casulo, esse bunker que criei como carcaça...
VAI PASSAR já ouvi mil vezes. E quando for, prometo lhe enviar um artigo para estar entre aqueles vários que você, brilhantemente, conseguiu coletar e organizar. Certamente, eles contarão, para o futuro, esse tempo estranho que vivemos.
Me alimento com alguma esperança, pensando como Gullar que a arte existe porque a vida não basta. Respirando com as lives de Caetano, Milton e Gil... Conversando sobre Inhotim com Adriana Varejão e Valter Hugo Mãe. Curtindo a mininovela do Pedropedroca no Instagram, vendo o mundo reagir contra o racismo e a homofobia. Aprendendo sobre nossa história com Krenak.
Conversando com amigos que descubro, redescubro e reencontro, vendo o que deixou algum Fernando, seja Pessoa ou Sabino:
De tudo ficaram três coisas:
A certeza de que estamos sempre a começar...
A certeza de que é preciso continuar...
A certeza de que podemos ser interrompidos antes de terminar
Por isso devemos:
Fazer da interrupção um caminho novo...
Da queda, um passo de dança...
Do medo, uma escada...
Do sonho, uma ponte...
Da procura, um encontro.
Obrigado pelo convite.
Antonio Grassi