Ana Paula Abreu Machado
Psicóloga
Vivemos no mundo moderno de inteligências artificiais, revolução digital, medicina robótica, conexões 5G e algoritmos. Recursos que mais sabem e ouvem (ou parecem ouvir) o que dizemos e queremos para sugerir algo por meio de nossos smartphones. Na ilusão pueril de que tínhamos o controle de tudo, fomos surpreendidos por um vírus tão devastador!
Inimigo poderoso de tamanho ínfimo, que não sabemos quando ou onde vai nos atacar. Verdade escancarada: este controle não é possível. Passamos a viver sem um norte, sem poder fazer planos de curto ou longo prazo. Confinados em nossas casas, os novos bunkers também se tornaram escolas, escritórios e playgrounds.
Vai passar. Novo normal. Rapidamente, essas expressões viraram os novos clichês, repetidos como mantras nos mais diversos cenários. Desesperados, tentamos acessar fórmulas antigas para construir um novo manual de instruções.
Notívaga, passei madrugadas na varanda contemplando um silêncio ensurdecedor. Observei incontáveis vezes o tempo de o semáforo abrir e fechar, sem que nenhum carro passasse. Pouquíssimas luzes acesas. Estávamos eu, Deus, meus medos, fantasmas e pesadelos. Chorei. Chorei no banheiro. Chorei sozinha. Chorei junto.
Constrangida com a percepção de que o tempo passou a correr bipolarmente, assim como eu, que oscilei do ativismo frenético à prostração total. Estabeleci limites: como eu alimentaria a minha mente?. Gosto de ler livros e estar atualizada sobre os acontecimentos por meio de diversas fontes.
Logo no início da quarentena, dei audiência a versões sadomasoquistas de noticiários, aqueles que esmiúçam a desgraça até o telespectador estar com o peito cheio de angústia, palpitações, suspiros e sem nada poder fazer por aquele que sofre. Infelizmente, o ser humano não tem prazer só em coisas boas.
Bicho-homem esquisito! Sabiamente interrogado no lindo poema de mesmo nome, de Francisco de Carvalho, musicado por Raimundo Fagner. Falando em limite terapêutico, após muitos anos e muitas resistências, voltei a fazer análise. On-line: algo que seria surreal, não fosse o contexto atual.
Desde a infância, encantada pela palavra escrita e suas entrelinhas, aprendi a falar através do papel. Confessionário. Coser sem agulha, linha e tecido. Ferida aberta, cicatriz, cura, parto e alívio. Tudo junto. Tenho costurado bastante!
Dilema: como será a vida pós-pandemia?. Como alegrar-nos em meio a tantas tragédias e mortes? Lembrei-me do significado de empatia, com o qual nunca concordei. A empatia é limitada pela própria humanidade. Posso ser uma pessoa sensível, generosa, engajada em ações sociais e me compadecer da dor do outro, mas jamais saberei o que é estar em seu lugar.
Não sei o que é o sofrimento dele – o que não me impossibilita de lhe estender as mãos. O limite do não saber não diminui as possibilidades de ajuda. Pelo contrário. Aprendi com a dádiva divina da maternidade que é preciso estar bem para cuidar de alguém.
Deleite-se com a vida! Esqueça a obrigação de ser feliz dos livros de autoajuda e receitas de bolo coaching! Overposting de felicidade só existe no mundo virtual. Acorde e escute Lenine: “A vida é tão rara!”. Enfeite sua casa com flores, arrume uma mesa bem bonita e saboreie a família reunida!
Setembro chegou! Fomos acordados do nosso devaneio de estabilidade e confrontados com a permeabilidade do mundo, onde os limites só estavam mesmo nos mapas. Temos uma chance única de reinventar um mundo mais criativo e responsável. Confesso que me senti subversiva levando os meus filhos à pracinha no último fim de semana... Munida do novo kit de cuidados, viva!
*Em referência à letra da música Sol de primavera, de Beto Guedes e Ronaldo Bastos