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Estado de Minas diário da quarentena

Em São Paulo ou no interior do Piauí, os dilemas são os mesmos

Jornalista Fernando Rocha escreve sobre o que vê e o que pensa dos dias isolados


19/09/2020 04:00


Eu contei até 100.

Depois parei de contar.

Comecei a arrumar a estante e depois parei de arrumar.

Cozinha, banheiro, armário e ginástica nem pensei em começar.

Comecei a ler James Joyce e também parei sem terminar.

O sábado ficou parecendo quarta-feira e a quarta-feira não ficou parecendo com nada.

As manhãs de abril,  as tardes de maio e as noites de junho já foram todas embora e nem deu pra conversar.

Tanta gente já foi embora e nem deu pra despedir.

Nessa e em todas as outras línguas do mundo.

Existe hoje alguém pra chorar de saudade, de raiva ou de tédio.

Não importa o tamanho da casa nem o que se enxerga da janela.

A praia mais linda ou a montanha mais alta.

Não importa a cidade.

Nem quanto custou a reforma da sala de visitas.

Ninguém vai chegar. Nem de surpresa.Nem de combinar.

Quem sempre chega impreterivelmente na minha casa arrumada ou bagunçada sou eu.

Mesmo sem sair de casa eu sempre chego.

Essa pessoa que eu vejo no espelho do corredor e do banheiro.

O inevitável encontro marcado de todos os dias. Comigo mesmo.

Um dia de cada vez, mas todos os dias.

Tempo nublado, de sol, tempo de nada e tanto faz e lá estou eu olhando pra mim.

Eu na quarentena rasgando o calendário, pedindo comida, pedindo água, pedindo perdão virtual para os meus pecados tão reais.

Se antes eu navegava, agora naufrago na internet procurando minha velha opinião formada sobre tudo.

Sobre quem enche as praias.

Sobre quem toma cerveja no Leblon.

Sobre quem duvida da vacina.

Sobre o bar aberto e a escola fechada.

Quem evita, quem convive.

Quem espirra e quem reclama...

A natureza melhorou nesses dias. Golfinhos apareceram em outros oceanos, passarinhos em outras árvores, macacos em outras matas.

Dizem que os canais de Veneza ficaram tão limpos que até sereias foram vistas por lá.

Mas e por aqui?

O que eu consigo enxergar?

Luz de vela no túnel com ventania.

Lição presencial dessa pandemia.

Infelizmente, não vou conseguir me transformar em alguém melhor.

Não tenho nenhuma lista de habilidades conquistadas neste tempo nublado.

Continuo sem entender o I Ching, flor da ameixeira e também não entendo meu vizinho.

Os livros seguem na estante sem ordem e parecem que vão continuar dessa forma.

Algumas coisas vão continuar exatamente dessa forma. Sem ordem.

Como a desordem dos moradores de rua na riqueza da Avenida Paulista.

Como o dinheiro que acaba da noite pro dia.

E do dia pra noite.

Sigo aqui da minha janela do 14º andar. Estou em São Paulo, mas poderia estar em São Raimundo Nonato, no interior do Piauí.

Tanto faz.

Nenhum espanto.

Sigo contando os dias.

Passamos dos 100.

Cem mil mortes e seguimos contando.

Tanto faz.

Nenhum espanto.

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