Jornal Estado de Minas

ENTREVISTA DE SEGUNDA

'A poesia organiza o caos', afirma o poeta e advogado Daniel Cruz

Conteúdo para Assinantes

Continue lendo o conteúdo para assinantes do Estado de Minas Digital no seu computador e smartphone.

Estado de Minas Digital

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Utilizamos tecnologia e segurança do Google para fazer a assinatura.

Experimente 15 dias grátis


 
Daniel Cruz Fonseca, de 26 anos, tem atrofia muscular espinhal tipo 2. Ele não fica em pé. “Se te der um soco, parecerá um carinho”, diz. Precisa de ajuda para se sentar na cadeira de rodas, tomar banho e comer. “Isso fez com que fosse uma criança que não jogava bola. Mas eu era o técnico”, conta.


Muito cedo, Daniel aprendeu a observar o mundo. Entendeu que somos diferentes, porém capazes. “A observação do outro é refletida em minha poesia, assim como experiências bem singulares que vivi. Por causa da ausência de músculos, minha coluna foi envergando, formando um 'S'. Para preservar a saúde, fiz uma cirurgia que implantou no meu corpo duas hastes de metal e 26 parafusos”, revela.
 
Essa vivência inspirou um dos poemas de seu primeiro livro, Nuvens reais (Ramalhete). O editor Álvaro Gentil diz que Daniel tem rico material, suficiente para outras publicações. “Álvaro é gentil em dizer isso, fico feliz vindo de um perito como ele. Já tenho mais um livro em estágio de maturação. Escrito, organizadinho e esperando para aperfeiçoar”, afirma.
 
Advogado com mestrado na área empresarial/direito digital, Daniel conta que a pandemia lhe permitiu parar um pouco para organizar o livro de estreia.
As leituras preferidas dele são Poema em linha reta, de Fernando Pessoa, Poema número 20, de Pablo Neruda, e O pássaro azul, de Bukowski. 


 
“Meus autores favoritos são Dostoievski, Hemingway, Tolstoi e Machado de Assis. Claro que, sendo da terra, bebi muito na ótima fonte que é Carlos Drummond de Andrade. Ah, faltou citar Adélia Prado e Ferreira Gullar.”  A pedido da coluna, ele escreveu o poema Ano novo, publicado ao lado.
 
O que o levou à poesia? O que ela representa em sua vida?
Poderia simplesmente dizer que a vida me levou à poesia e esta representa toda a minha vida. Talvez isso soe clichê ou arrogância minha. Vou tentar esclarecer: odiava poesia, até passar por um momento muito triste e solitário, no qual, em completo desamparo, recorri à escrita como espaço de desabafo. Foi um refúgio. De certa forma, ainda é.
 
 

Vivemos um momento muito difícil da história da humanidade. Qual é a importância da poesia nesse contexto?
A poesia é a tela em branco onde o autor pinta os sentimentos que vê no mundo. Neste momento tão triste e desolador, as pessoas se perdem em sentimentos. Transbordam emoções. Diagnosticar essas sensações é tarefa hercúlea, ainda mais isolados pelo distanciamento social, que é necessário, e bombardeados por tragédias. Acredito que vendo seus sentimentos pintados por outros naquelas telas chamadas poesia as pessoas possam se identificar e se sentir acolhidas. A poesia organiza o caos e pode ajudar o leitor a se acalmar – ou surtar, igual a Dom Quixote.



Como é o seu processo criativo?
Agora você me pegou! Não tenho o processo fixo de escrever em determinada hora sobre determinada coisa. Normalmente, meus poemas vêm das minhas observações da realidade, que tento destrinchar, ressignificar ou descrever com figuras de linguagem. Como tenho insônia, sou mais produtivo no silêncio da madrugada. Mas não existe padrão. Tem uma poesia no último livro que escrevi em plena festa de formatura da faculdade, com funk tocando ao fundo. Na hora em que observo algo interessante, sinto a necessidade de digitar no bloco de notas do celular. Depois organizo com calma.

Aos olhos do poeta, onde reside a força para enfrentarmos a pandemia?
A força está em cada um de nós. Ficou parecendo frase de Star wars, mas é verdade. Basta projetarmos onde queremos estar quando tudo isso passar. O que faremos? Até lá, vamos segurando a ansiedade e vivendo dia a dia com a consciência de que tudo passa. Não vejo a hora de voltar a sair, desde 8 de março estou dentro de casa. Assim que passar, voltarei ao Mineirão, à minha cidade, para ver a família, e aos shows de que tanto gosto. O mundo voltará ao normal, nós é que estaremos diferentes, mais solidários, espero. Da dor ressurge a esperança, que é a semente de um futuro melhor. 
 
 
Ano novo

Vestirei branco por mera superstição
Verei fogos dançando no céu
Um bom tango de Gardel ou samba de Noel
Amo suas luzes e cores estourando
Lembro-me das noites que passei amando

Meus cachorros não gostam do barulho
Se escondem como se fosse o fim do mundo
E quase estiveram certos da última vez,
Que ano desesperador e trágico
Parecia uma pandemia de insensatez

Eu gosto do réveillon...
É o momento em que lembro 
que toda dor tem fim
Refaço meus planos e ponho ordem no caos
Para tentar fazer progresso em mim

Estouro o champanhe e recebo seus beijos
Recebo a esperança nesta noite virada
Reanimo meu coração 
paralisado pela ansiedade
Mesmo sem comer lentilhas ou pular ondas

Sei que o próximo ano será melhor
Até porque é difícil ser pior
Torço apenas para ter saúde e felicidade
Porque no fim eu gosto de renovar