QUAL É A MÚSICA?
“PESADELO” (1974)
De Chico Buarque
Heloisa Murgel Starling
historiadora
“Acorda, amor” é o samba que Chico Buarque compôs, em 1974, com a intenção de confirmar que o catálogo de direitos tinha sido expurgado da vida dos brasileiros durante a ditadura militar. Vinha assinado por Julinho da Adelaide e seu meio irmão, Leonel Paiva, os heterônimos falastrões inventados por Chico para driblar a censura.
O samba sustentava um arranjo impressionista onde sobressaía o som de sirenes de rádio-patrulha e trazia um refrão que escancarava a profunda inversão do sinal que legitima a segurança do cidadão no Estado de Direito – ao invés de “chame a polícia”, alertava o compositor, “chame o ladrão”.
Os versos de Chico sumariam os abusos de poder e relatam as lesões produzidas pela ditadura militar às liberdades individuais. Num mundo regido pelo arbítrio, não cabe regra capaz de impedir a desmedida: agentes do Estado retiravam uma pessoa indefesa de sua casa, levavam-na para um centro de detenção desconhecido, interrogavam-na. Durante o interrogatório essa mesma pessoa poderia ser submetida a alguma forma de tortura: “Acorda amor/Eu tive um pesadelo agora/Sonhei que tinha gente lá fora/Batendo no portão, que aflição/Era a dura, numa muito escura viatura/Minha nossa santa criatura/Chame, chame, chame o ladrão, chame o ladrão...
A margem de manobra permanecia mínima, o risco de qualquer pessoa acordar do pesadelo recorrente e cair noutro pesadelo dentro de uma cela de prisão era real. Às vítimas sobrava perplexidade, a sensação de pânico e a tentativa meio patética de se agarrar dignamente aos aspectos mais banais do cotidiano para não se aviltar no medo: “São os homens/E eu aqui parado de pijama/Eu não gosto de passar vexame/Chame, chame, chame/Chame o ladrão, chame o ladrão...
Desse ponto em diante, ocorriam prisões sem explicações nem registros, os desaparecimentos forçados, os sequestros e as execuções políticas. Aos familiares, restavam tensão e dor, amplificadas pela ausência da resposta: “Se eu demorar uns meses convém/às vezes, você sofrer/Mas depois de um ano eu não vindo/Ponha a roupa de domingo/E pode me esquecer”.
“Atenção/Não demora/Dia desses chega a sua hora”, profetizavam, ao final, os versos de Chico. Na definição do autor, essa é uma canção de circunstância e deve ser tomada em toda sua literalidade. Então, talvez a profecia faça sentido e ela tenha algo a dizer aos nossos assuntos contemporâneos. “Acorda amor” alude a um estoque de valores fundantes do regime democrático: as liberdades de ir e vir; de expressão; de associação; de imprensa; de autodeterminação; de votar e ser votado; à voz em decisões de interesse coletivo; à presunção de inocência até prova de culpa acima de dúvida razoável; e a julgamento justo, com o devido processo legal.
No coração de seus versos pisca um alerta: o funcionamento do catálogo de direitos depende de uma sociedade disposta a defender esses valores e dar prosseguimento à consolidação da democracia no Brasil. Hoje, nós conhecemos a história e podemos rejeitar as armadilhas da tirania. O legado da canção é esse: lembrar as escolhas que precisam ser feitas para que nunca mais, em nosso país, alguém acorde bem cedo, em casa, de pijamas, sem alternativas – a não ser apelar para o ladrão.