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A música de Chico Buarque e a voz do indizível

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Luca Bacchini, 
Professor na Universidade de Roma "La Sapienza" e organizador do volume “Maestro soberano: ensaios sobre Antônio Carlos Jobim”

Há músicas do passado que nunca deveriam voltar a ser atuais. Músicas que retêm as emoções de momentos dramáticos e que deveriam sobreviver apenas como testemunhos de épocas remotas, quando aconteceram fatos que seriam impensáveis no tempo presente. Esse é o destino que se esperava ser reservado a “Cálice”, de Chico Buarque e Gilberto Gil. Composta em 1973, em plenos anos de chumbo, a música proporciona um retrato vívido e angustiante de uma das fases mais tenebrosas da história do Brasil.



A inspiração inicial veio das Sagradas Escrituras. Era a Sexta-feira Santa e Gil recordou-se das palavras pronunciadas por Jesus durante a agonia no Getsêmani: “Meu Pai, se possível, afasta de mim este cálice” (Mt 26:39). Logo depois, associou o cálice (símbolo da Paixão) ao vinho (símbolo do sangue de Cristo) e, assim, a primeira estrofe estava pronta: “Pai, afasta de mim esse cálice/ De vinho tinto de sangue”.

No dia seguinte, foi mostrar esses versos para Chico que, imediatamente, reparou na homofonia entre o substantivo “cálice” e o verbo “cale-se”. A partir daí, surgia um novo horizonte de significados. Na oração de Jesus ecoava o lamento de quem pedia ao Pai/Pátria o fim da opressão e dos inúmeros “cale-se” da censura. “Cálice” é, com efeito, uma música sobre a escuta que pretende dar voz ao indizível e doloroso silêncio das vítimas.

Um silêncio que “atordoa”, imposto por “tanta mentira e tanta força bruta”, que nega o direito de expressar opiniões e sentimentos (“essa palavra presa na garganta”) e que exige a aceitação muda das injustiças (“Tragar a dor, engolir a labuta”).



Nota-se que o tom litúrgico da música transcende o diálogo com as Sagradas Escrituras. Há imagens de teor bíblico que, na verdade, foram inspiradas pelas circunstâncias em que ocorreu a parceria. A “bebida amarga”, por exemplo, é o nome dado por Gil ao Fernet branca, uma bebida alcoólica italiana, de fato bastante amarga, que Chico gostava muito e que costumava oferecer aos amigos.

Por sua parte, a figura apocalíptica do “monstro da lagoa” foi sugerida pela vista da Lagoa Rodrigo de Freitas, que era possível admirar da cobertura onde Chico morava na época. No final da música, o verso “quero cheirar fumaça de óleo diesel” remete ao estudante Stuart Angel Jones, filho da estilista Zuzu Angel: em junho de 1971, ele foi preso, torturado e assassinato pelos militares. Forçado a respirar os gases de escapamento de um jipe, morreu intoxicado por monóxido de carbono.

Com a infalível companhia do Fernet, “Cálice” foi terminada em poucas horas. A música seria apresentada em maio no festival Phono 73, no Anhembi, mas, em cima da hora, foi proibida. Chico e Gil decidiram igualmente executá-la. A tentativa, porém, durou poucos segundos: os organizadores tiraram o som do palco. Fatalmente, o cale-se da letra atingiu seus autores. A sequência de Chico que passa de um microfone para outro em busca de um que ainda funcionasse, vale como documento icônico do Brasil da ditadura.



Chico gravou “Cálice” em 1978, com a participação de Milton Nascimento, mas foi preciso esperar 45 anos antes que voltasse a cantá-la em público. Isso aconteceu em 28 de julho de 2018, em ocasião do Festival Lula Livre, no Rio e, ao seu lado, estava Gilberto Gil. Novos monstros começavam a emergir na lagoa e era apenas o início.

Confesso que “Cálice” não é uma das minhas músicas preferidas. Contudo, é uma das músicas que há alguns anos escuto com frequência. Não porque gosto, mas porque sinto que é preciso. E não é um bom sinal. Por isso, hoje, o que peço ao Pai é que afaste de mim “Cálice”. Que não haja mais motivos para Chico e Gil cantá-la e para eu escutá-la; que ela não toque mais nas rádios, nem na versão rap de Criolo; que ela saia de vez das minhas playlists e que volte a ser o que, em 2021, é justo que seja: apenas uma música extraordinária, totalmente desatualizada.