Pedro Luís
cantor e compositor
Os 70 – sim, a década de 1970 – foram anos intensos. Sendo de uma família de muitos irmãos que sempre foi empática e interessada pelas causas progressistas, eu assistia, muito por conta dessa “irmanada” sagaz, uma efervescência na música e nas artes, naturalmente temperada pela turbulência política – aqui, especialmente, e contra-cultural – mundo afora, mas que se esparramava também por nossa terra tão diversa e tão complexa. Já fechando o ciclo do que seria a minha infância meus olhos ávidos e ingênuos, com o frescor pertinente a essa idade e a excitação particular que sempre me foi peculiar, assistiam estupefatos um furacão caleidoscópico de cores e acontecimentos.
Terror e beleza atravessavam a vida e a sociedade, e a trincheira onde meus pares-parentes se encontravam naturalmente era a de quem se esgueirava e protegia-se das perversidades do terror da ditadura civil-militar e se abastecia das belezas que uma arte e música plurais nos ofereciam aos borbotões: uma turba diversa de artistas da canção, do teatro, do cinema e mais, muito mais.
Nesse cenário contradito, de ditadura e explosão criativa, vi meu pai e irmãs mais velhas queimarem toda uma bibliografia marxista comprometedora em um latão no quintal dos fundos ao mesmo tempo que a música pulsava diversa na espécie de família dó ré mi que éramos: Elises, Bethânias, Miltons, Chicos, Caetanos, Gis e tantos outros nos atravessavam a alma no melhor dos sentidos como um bálsamo, consolo, escola livre e doses robustas de beleza.
Minhas manas traziam de suas aulas de violão pro nosso LoBuarque – sim, assim elas batizaram o Di Giorgio que ganharam em 1965 homenageando Chico e Edu e onde arrisquei meus primeiros acordes e autorias, toda uma imensidão de Naras, Tons, Edus, Vandrés, Joões e tantos. Não imaginava então que ali estava se formando, nessa escola-vida, o que serviria de tecido primal pra tudo o que seria meu caminho de ser cidadão e até minha escolha profissional.
Uma mítica justificada daquele momento era a quantidade de canções e textos – artísticos ou jornalísticos, censurados e subjugados aos critérios mais espúrios e estapafúrdios de que já se teve notícia. A qualquer sensação ou desconfiança de ataques à moral, ao poder político, aos bons costumes decididos e guardados por um comando indecente e seus funcionários patéticos e/ou bizarros, lá ia a obra pro sacrifício, ganhando um ordinário carimbo de “VETADO”.
Quis o destino – generosíssimo com este narrador – que uma dessas maravilhas que teve o desprivilégio de receber o perverso carimbo viesse, por artimanhas do destino, ganhar os ouvidos através de minha voz: obra de cunho absolutamente pessoal, feita pra uma gravidez perdida de sua mãe, “Feto, poeta do morro”, de Luiz Melodia, impedida de chegar ao público por um desses vetos bizarros, ficou inédita até que Jane Reis, companheira de Luiz por 40 anos, me desse a honra de trazê-la a público em meu “Vale quanto pesa – Pérolas de Luiz Melodia” (Edição de Luxo), álbum-homenagem que gravei com a obra do imenso poeta do Morro do Estácio do nosso Brasil.
Seria injusto destacar um verso ou estrofe de uma obra tão inteira e intensa. Então, deleitem-se com a íntegra da letra, sem vetos.
“Feto, poeta do morro”
Esta Santa
Este rosto
Esta madrugada
Esta dança
Esse roxo
Essa mão gelada
Este atento
Ouço passo pelos corredores
Este feto
Este sangue
Banha a Guanabara
Este teto
Este morro
É a minha escola
Nesse passo
Pra chegar
No Estácio até demora
Nesse papo
Pra chegar
No Estácio até demora
Deste asfalto
Pra chegar
No Estácio até demora
Carnaval, fantasias
São muitas barrigas
No nosso Brasil
Em cada barriga um poeta sorriu
É o morro do Estácio do nosso Brasil
Ouça em https://PedroLuis.lnk.to/FetoPoetadoMorro