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Estado de Minas COLUNA HIT

Munida de coragem e livros, economista enfrenta as angústias da pandemia

Simone Libânio Rocha montou a Biblioteca Lincoln Rocha Júnior, dedicada ao irmão que já se foi e inspirada numa frase dele: ''O universo é contingente''


21/08/2021 04:00 - atualizado 20/08/2021 22:21

Simone Libânio Rocha
Economista e gestora na área de saúde



Meu marido adoeceu logo após o anúncio da pandemia. Foi a primeira pessoa do meu relacionamento a contrair a doença. Quando o vi colocar o oxímetro no dedo e constatar variação na sua capacidade pulmonar, tive medo. Medo de um possível CTI e de perdê-lo. Senti um aperto no coração. Ficamos 20 dias em casa, ele doente e eu de quarentena. Nesse momento, decidi que exercitaria a coragem que achava que tinha. Pratiquei, diariamente, o que havia feito poucas vezes na minha vida de casada: preparei as refeições, lavei louças e panelas, cuidei da casa, passei pano no chão, limpei os banheiros, enfim, me tornei a dona da casa.

Nesse período, nos assentávamos em frente à janela aberta, após o almoço, e tomávamos um sol gostoso que nos enchia de vida para o restante da jornada. Trabalhamos normalmente em casa e ficamos juntos, embora em quartos separados. Ao final do enclausuramento, retornamos, aliviados, para a rotina externa. Meus filhos, a princípio temerosos com a virose e com a doença do pai, se acalmaram quando perceberam que, de nós, só viria coragem para o que desse e viesse.

Os meses se passaram, as máscaras tomaram conta de nossos rostos, o álcool em gel virou item de primeira necessidade, o ano de 2020 passou e, em fevereiro de 2021, nós dois, profissionais da saúde, nos vacinamos. Mesmo aliviada pela esperada imunidade, a angústia se instalou em mim ao perceber que a maior parte da família e dos amigos não tinha se vacinado. Esse sentimento se alastrou à medida que as notícias de mortes aumentavam. A cada dia, perdíamos pessoas próximas.

Não houve o definitivo adeus a muitos entes queridos que se foram. Os que ficaram não receberam nossos abraços amigos. Tudo foi breve e insuficiente para sossegar as perdas. Andar de carro pelas ruas vazias, no trajeto para o trabalho, foi sofrido. As pessoas em situação de rua aumentaram nesse tempo, escancarando a brutal desigualdade de renda. A essa altura, todas as noites, eu pedia a Deus que nos salvasse. A lista de pedidos era enorme. Enumerava todas as pessoas, nominando-as uma a uma. Ao final, rezava pelo mundo todo.

"Concretizei um sonho no último ano: fiz a minha sonhada biblioteca, adiada há anos. Ela terá o nome de Lincoln Rocha Júnior"


Assim foi até este fim de semana, quando minha filha me indicou para escrever um texto em uma coluna de jornal, contando sobre o meu aprendizado dessa época. Olhei à minha volta, me questionando sobre o quanto essa enfermidade havia me transformado. De imediato, me lembrei de que aprendi a olhar a imensa paineira que fica defronte à minha janela. Suas quatro estações desfilaram pela mente: as pluminhas, as folhas, os frutos, as flores e o despojamento de cobertura no inverno.

Continuei pensando sobre as mudanças e me dei conta de que concretizei um sonho no último ano: fiz a minha sonhada biblioteca, adiada há anos. Ela terá o nome de Lincoln Rocha Júnior e será uma homenagem ao meu irmão, que foi embora há nove anos. Bibliófilo admirável, reforçou em mim o amor pelos livros e pela literatura.

De tudo o que gosto de fazer, ler é o melhor da noite, assentada em minha cama. Se biblioteca é um nome pomposo para o espaço que a minha ocupa – afinal, são espaços grandes e repletos de livros –, o seu significado é maior do que qualquer local. Ela me deu meu canto, minha noite estrelada, meu dia quentinho de sol no inverno.

Júnior escreveu uma frase que ficará registrada na placa em sua homenagem: “O universo é contingente”. E é mesmo! Ainda assim, com tanta incerteza, me levanto todos os dias, visto minha humanidade, dou uma espiada na biblioteca e sigo em frente! Pode haver algo mais forte do que a certeza da minha coragem?


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