Marcela Telles
Escritora
1º de maio de 1971. Em cadeia nacional, o general Médici anunciou à nação:
“Pela primeira vez, na história deste país, dar-se-á ao homem do campo aquilo que nunca lhe fora concedido: aposentadoria, auxílio-invalidez e pensão.”
A expansão de direitos sociais aos trabalhadores rurais foi um dos eixos da política agrária adotada pelos governos militares para reduzir a tensão em torno da questão agrária no país. O outro eixo substituiu a demanda pela redistribuição das terras por projetos de colonização. Uma estratégia resumida no dístico: fazer chegar o homem sem-terra a terra sem homens. A Amazônia era essa terra. A Transamazônica, o caminho para se chegar a ela.
Em cinco anos, cerca de 100 mil famílias foram transferidas para as agrovilas instaladas na região. No início dos anos 1980, muitos desses trabalhadores retornaram. Endividados por empréstimos necessários para a compra de terras, ferramentas e fertilizantes, acabaram perdendo suas propriedades.
A criação do Programa de Polos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia (Polamazônia), em 1974, e o lançamento do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND 1975-1979), pelo general Geisel, colocaram as atividades agropecuárias à frente dos projetos de colonização. Em 1977, dos 627.038 hectares desapropriados por interesse social, somente 65,6 mil se destinavam à formação de colônias.
Muitos trabalhadores se tornaram mão de obra assalariada, empregada na derrubada da mata para formação de pastos e ao final dispensada. A própria natureza da atividade pecuária dispensava mão de obra e esvaziava territórios. De colonos, passaram a boias-frias, peões. Muitos acabaram escravizados nas fazendas dirigidas por conglomerados econômicos e multinacionais.
Em 1980, Rolando Boldrin recorre à sonoridade caipira da viola e da sanfona para narrar a errância desses homens na canção “Êta país da América”: “Eu vim lá dos cafundós, do Judas/ E as mudas de lugar foi pra eu melhorar, de vida/ Mas que vida, que vida/ Que vida vou levar, só Deus sabe/ Velhas estradas das milongas coloridas/ Grandes atalhos dão num beco sem saída/ Se eu vim do Norte ou lá do Sul pouco importará/ Leste ou Oeste é um faroeste pra poder chegar”.
Na construção do percurso traçado por esses homens pelo país, o compositor retomou a figura do Jeca-Tatu, construído por Monteiro Lobato em 1914. Inseriu o personagem em meio ao Éden-Eldorado que, na década de 1970, foi situado pelos governos militares na floresta amazônica.
Frente à exuberância da natureza que sustentava o Brasil dos senadores e governadores biônicos, como eram conhecidos os indicados aos cargos pelos generais ou eleitos pelo voto indireto, Rolando Boldrin focalizou a permanência de um Brasil biotônico, referência ao Biotônico Fontoura, consumido principalmente no meio rural como complemento de uma dieta minguada.
Nesse país subnutrido, o Jeca permanecia como descrito por Lobato: “No meio da natureza brasílica, tão rica de formas e cores”, só ele “não fala, não canta, não ri, não ama. Só ele no meio de tanta vida não vive.”
Os versos do compositor colocaram à mostra um Brasil que se mantinha na contramão do país grandioso construído pelos discursos e propagandas oficiais: “Êta país amazônico/ Harmônico e azul/ É um país biotônico/ Do Jeca, do Jeca-Tatu”.
.A COLUNA HIT PUBLICA AOS DOMINGOS A SEÇÃO “QUAL É A MÚSICA?”. A CADA SEMANA, UM CONVIDADO ESCREVE SOBRE CANÇÕES MARCANTES LANÇADAS DURANTE A DITADURA MILITAR E A RELAÇÃO DELAS COM O BRASIL CONTEMPORÂNEO