Bruno Viveiros Martins
Professor do Centro Universitário Estácio e autor do livro “Som Imaginário: a reinvenção da cidade nas canções do Clube da Esquina”
Em 1979, a campanha pela anistia ampla, geral e irrestrita aos presos e exilados políticos agitou o país com passeatas, protestos e mobilizações. Nesse contexto, grande parte dos brasileiros saiu às ruas em nome da democracia contra a ditadura militar. Isso somente foi possível com a reorganização dos movimentos sociais e políticos que voltavam a exigir, na praça pública, o respeito às leis constitucionais perante o poder do arbítrio a partir de meados dos anos 1970.
Dois anos antes, em 1977, Milton Nascimento e Fernando Brant reuniram-se para compor uma canção chamada “Credo”. Fernando aproveitou a melodia criada pelo parceiro para fazer uma referência especial à juventude: a movimentação de jovens universitários, em Belo Horizonte, na tentativa de realização do 3º ENE – Encontro Nacional de Estudantes, que pretendia reestruturar a União Nacional dos Estudantes (UNE). Contudo, o evento previsto para 4 de junho foi duramente reprimido. Houve confrontos em muitos pontos da cidade. Vários estudantes foram presos e fichados pelo Dops-MG, após se recusarem a deixar o Diretório Acadêmico da Escola de Medicina da UFMG.
Em meio à “noite política” vivida no Brasil desde o golpe de 1964 – metáfora muitas vezes utilizada para referir-se de forma oblíqua à ditadura que amordaçava o país –, o Clube da Esquina tornou-se uma espécie de guarda crepuscular da liberdade.
“Credo” foi gravada no ano seguinte, como faixa inicial do LP duplo “Clube da Esquina 2”, tendo “San Vicente” como música incidental. Ela é uma canção otimista, luminosa, solar. Seu título carrega o nome de uma das orações mais importantes da liturgia católica. Em latim, a palavra significa eu creio.
Porém, o que à primeira vista aparenta ser referência à devoção aos preceitos cristãos se converte, nos primeiros acordes, em verdadeira fé cívica, uma vez que a narrativa se volta para a excelência do cidadão e seu amor ao mundo: “Caminhando pela noite de nossa cidade/ Acendendo a esperança e apagando a escuridão”.
Em lugar do medo e do silêncio impostos pelo governo dos generais, Fernando Brant e Milton Nascimento recorrem à esperança, princípio catalizador da ação política disposta a ultrapassar os limites de uma realidade insatisfatória. A interpretação vocal forte e segura de Milton é acompanhada em coro por Lô Borges, Nelson Angelo, Novelli e Toninho Horta reproduzindo o clima das grandes manifestações que voltavam a tomar as ruas do país naquele momento.
Na gravação, fica claro o diálogo com a canção latina. O ritmo contagiante que varia nos compassos 3/4 e 2/4, muito utilizado pelo cancioneiro hispânico, imprime à letra sentido positivo, firme e decisivo. No arranjo estão presentes instrumentos andinos, como zampona, charango e bombo legüero, executados pelo grupo Tacuabé. A sonoridade, própria da tradição musical da América do Sul, recriada pelo Clube da Esquina, sugere que a esperança de que falam os versos seria um sentimento compartilhado pelo canto uníssono a reunir o povo de todo o continente em uma única marcha disposta a ocupar, novamente, as ruas e avenidas.
Aliás, os compositores reinventam a própria ideia de cidade enquanto espaço comum, próprio da atuação de cidadãos críticos, participativos e capazes de refundar, na escuridão do momento vivido, uma democracia repleta de luz: “Caminhemos pela noite com a esperança/ Caminhemos pela noite com a juventude.”