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Mineiros enfrentaram a censura para cantar 'Viva Zapátria' em festival

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Murilo Antunes*
Compositor e poeta

“Por que existo, Senhor, quando não posso cantar?”. Este clamor é da poeta Jacinta Passos, falecida em 1973, que ilustra bem o período que vivíamos no Brasil. A ditadura militar mandava e desmandava, pisando na Constituição com suas botas soturnas e impedindo a população de expressar sua indignação e revolta.



A censura ceifou a vida de muitos artistas, calou vates e humilhou a nós todos, já que tínhamos de submeter nossas criações a julgamentos de quem desprezava a cultura e as artes.

Meu primeiro parceiro, Sirlan, foi vítima dessa atrocidade. O ano era 1972, a nossa parceria, “Viva Zapátria”, concorreu ao 7º Festival Internacional da Canção (FIC), tendo sido aclamada e uma das finalistas daquele evento transmitido ao vivo para todo o país. Mas, para concorrer, fomos obrigados a ir ao Rio e a nos submeter a um longo interrogatório, na sede da Polícia Federal. Perguntas esdrúxulas, primárias, de censores importados de outras repartições federais, que não sabiam nada de arte, os próprios capachos dos generais.

A partir dali, começou nossa batalha para liberar nossas músicas. A gravadora Som Livre ofereceu um contrato de gravação ao meu parceiro, mas tínhamos de conseguir previamente o carimbo de APROVADA em nossas letras.

Os parceiros do Sirlan éramos eu e Fernando Brant. Enviávamos nossas letras para a Censura e, a cada remessa de 8 a 10 letras, uma ou duas voltavam liberadas. O que fizemos? Trocamos as parcerias: eu letrava as melodias que o Fernando já havia feito e vice-versa.



O tempo passava. O calor do festival arrefecia. A oportunidade de Sirlan se lançar no mundo da música foi se esvaindo. Tanto que, só quatro anos depois, teríamos 10 músicas liberadas para que ele lançasse seu primeiro elepê.

Frustração, decepção, injúria e desânimo tomaram conta daquele promissor compositor brasileiro que teve sua vida artística ceifada na raiz. Assim como inumeráveis artistas, jornalistas, escritores, cientistas, sociólogos, historiadores, antropólogos, juristas, religiosos, ativistas e políticos progressistas tiveram carreiras interrompidas pelas mãos pesadas da ditadura.

O exílio, a prisão, a tortura ou a morte foi a recompensa que deram a tantos sábios brasileiros, construtores e defensores da democracia.


É isso que queremos que aconteça novamente? Quando vejo manifestações recentes pedindo o retorno da ditadura, me pergunto: o que querem esses pusilânimes e seus seguidores? Como parar a sanha desses retrógrados apologistas da violência e do emburrecimento do país?

Só a indignação não basta, sabemos disso. Há de haver alguma forma de barrarmos a insanidade dos atuais déspotas que zombam da nossa inteligência e cultivam interesses de grupos de poder ao massacrar o sonho de um país que andava a passos largos para certa igualdade social.



Deixo aqui a lembrança dos versos de Paulo César Pinheiro, cultivados naqueles tempos turvos para levar esperança e força a todos nós. “Você corta um verso/ Eu escrevo outro/ Você me prende vivo, eu escapo morto/ De repente, olha eu de novo/ Perturbando a paz, exigindo troco.”

E outros versos extraídos da sabedoria popular, os quais inserimos, eu e Tavinho Moura, em uma das nossas canções bem-sucedidas: “Meu facão guarani quebrou na ponta, quebrou no meio/ eu falei pra morena que o trem tá feio.”

*A Coluna Hit publica aos domingos a seção 'Qual é a Música?'. A cada semana, um convidado escreve sobre canções marcantes lançadas durante a ditadura militar e a relação delas com o Brasil contemporâneo.