Como planejadora, Márcia Ribeiro conta à coluna que fez inúmeros trabalhos voltados para cenários futuros. “Mas jamais vislumbrei algo tão abrupto e assustador como o momento que estamos vivendo”, diz. “Questões climáticas, de segurança e de guerras sempre estiveram mais presentes quando o assunto era o que poderia acontecer de mais assustador para a humanidade. Uma pandemia era algo impensável para mim.”
Apesar de tudo, Márcia diz ter muito a comemorar no mês dos 18 anos de sua produtora, a Nó de Rosa. “Caminhar até aqui neste país e estar de pé pós-pandemia é uma grande vitória. A Nó de Rosa sempre atuou em todas as áreas da produção – cultural, corporativa, eventos de negócios e social. Essa capacidade nos permitiu atravessar o hiato que a cultura e o entretenimento ainda vivem. Atendemos grandes empresas no planejamento e execução de eventos e nos fortalecemos através desses trabalhos”, explica. “A cultura está vivendo duas pandemias, a da COVID-19 e a da política brasileira. Ambas gravíssimas.”
A Nó de Rosa produziu centenas de shows em BH. Ela se lembra de histórias de Bob Dylan, Ozzy Osbourne e Dolores O’Riordan, desconhecidas dos fãs. “Bob Dylan de moletom caminhando por quatro horas no Parque Municipal para fugir dos jornalistas de plantão na porta dos hotéis. Sim, hotéis. Mudamos cinco vezes de hotel para tentar desvencilhá-lo dos jornalistas. Passa tudo na cabeça da gente. E se ele for assaltado no parque? E se a polícia abordar aquele sujeito de capuz caminhando sem rumo pelo parque? Produtor sofre!”, diverte-se
Ozzy Osbourne protagonizou histórias hilárias, como o aperto gigante da Nó de Rosa para conseguir o SUV com as medidas exigidas pelo chefe da segurança dele. “Quando conseguimos, ele não aprovava os motoristas bilíngues selecionados. De repente, escolhe meu irmão, dono da SUV, para dirigir o carro. Meu irmão não fala nem bom-dia em inglês, nunca tinha ouvido uma única música do Ozzy. Ele me ligou da porta do hotel: 'Este cara é louco? A produção está aqui explicando que não sou motorista e ele continua insistindo que só aceita se for eu'. Enfim, por contrato, não podíamos fazer fotos e nem pedir que ele autografasse nada. O Ozzy conversou com o meu irmão o trajeto inteiro – não me pergunte como – e ele pediu que autografasse uma pilha de cartazes que várias pessoas haviam pedido.”
Dolores O'Riordan (The Cranberries) amou o público mineiro. “Ela se emocionou com a plateia, que cantava todas as músicas. Gostou tanto que não quis ir embora no dia seguinte. Pediu para alterar a agenda e ficar um pouco mais por aqui. Quis fazer um dia de beleza. Como os salões fecham às segundas, tivemos a sorte de conseguir uma fã que abriu o salão com exclusividade. Que bom que fizemos esse mimo para esta artista tão ímpar”, diz Márcia.
Lulu Santos e vários artistas adiaram shows devido à pandemia. Como o produtor está vivendo diante das indefinições provocadas pela Ômicron?
Vivemos um momento de desinformação, fake news, falta de clareza e responsabilidade nas diretrizes que deveriam ser tomadas pelas autoridades competentes. O público está confuso com tanta desinformação. E o setor de cultura e entretenimento à mercê das vontades políticas ocasionais. A ciência já sabe e demonstrou o que é necessário para evitar a transmissão do vírus: vacinação, uso de máscaras, higiene das mãos e não aglomeração. Precisamos confiar na ciência e estabelecer as regras de funcionamento do setor com responsabilidade. Cancelamentos e adiamentos não deveriam ser mais uma alternativa para eventos. Assim como todos os outros setores da sociedade e da cadeia produtiva, precisamos trabalhar.
Em 18 anos, a produtora trouxe mais de 100 shows nacionais e internacionais a BH. Quais deles foram muito especiais para você?
O primeiro show do Paul McCartney será sempre uma das melhores lembranças. Somos uma cidade que sonhava em receber um Beatle. O Clube da Esquina nos fez sonhar com isso. Por toda a luta que travamos para trazer este show, posso dizer que ele merece o lugar de destaque que sempre será revisitado. Paul é um ser humano muito especial. Deixou belas histórias aqui. O que dizer dele andando de bicicleta na Pampulha e ninguém tê-lo reconhecido? Vou citar outro gigante, Roger Waters, porque acho o show e a vinda dele cheios de significados hoje. Olhando pra trás, parece que ele já estava vendo o Brasil melhor do que nós. Foi valente ao enfrentar a plateia, já dividida politicamente naquele momento no Brasil. A arte tem um poder enorme, o palco é um lugar sagrado. Por último, vou citar Pedro Cardoso. Pessoa singular. Trabalhamos algumas vezes e aprendi a admirá-lo e a respeitá-lo muito. Um grande profissional e um ser humano espetacular. Pedro me ensinou que o meu trabalho era tão importante quanto o dele, nem mais nem menos.
Como está a negociação de shows internacionais? O negacionismo do governo federal afasta essas possibilidades?
Poucas vezes negociamos diretamente com a atração. Normalmente, somos parte da rede de produtores internos. Sobre negacionismo, o Brasil tem destaque nessa bestialidade, mas não somos os únicos. O mundo está passando por processos similares. Conta a nosso favor a população ter aderido à vacinação. Esse é o nosso trunfo. Sem isso, seríamos isolados, com certeza. O Brasil tem tradição. Os grandes festivais nos credenciaram como país com grande capacidade de receber as grandes turnês.
Como você vê a política cultural do governo federal?
É tão terrível falar sobre isso. Dolorido mesmo. Espalhar uma inverdade para pessoas sem ou com pouco conhecimento é o mesmo que dar arma para jovens doutrinados, como fazem os extremistas mundo afora. Sinceramente, quero acreditar que este é o último ano dessa loucura toda. Espero fazer parte do grupo de pessoas que ajudarão a colocar cada coisa em seu lugar e seguir no caminho que estávamos construindo, políticas culturais sérias, justas e inclusivas. Ainda estávamos engatinhando, muita estrada para caminhar, mas era um caminho. Hoje não temos nada. Não há política cultural no Brasil de hoje.