BLOCO NA RUA
É preciso cavar pra frente
Guto Borges
Puxador de bloco de carnaval
“Lá na pedreira nasceu o rufar desses tambores.
Quando lá se plantam rosas da pedra nasceram as flores”
No lindo samba acima, chamado “Rufar dos tambores”, Dona Eliza, uma das mais profícuas compositoras desta cidade, nomeia o berço do samba e da cultura suburbana em Belo Horizonte: a Pedreira Prado Lopes, ou “nossa querida Mangueira”, como gosta de chamá-la Mestre Conga.
Talvez você tenha ouvido falar sobre ter sido lá a fundação da primeira e seminal escola de samba da cidade, a Pedreira Unida, em 1938. Mas Dona Eliza narra também uma espécie de procedimento incrivelmente poderoso que o nascimento do samba nos legou por aqui, o de fazer nascer flores sobre pedra.
Belo Horizonte não é uma cidade, digamos, afeita a manter de pé suas tradições, histórias e memórias. Especialmente quando elas se passaram “do lado de lá do rio”, como dizia Jadir Ambrósio. Ao contrário, seu talento parece ser o de demoli-las. Basta lembrar o desaparecimento da Praça Vaz de Melo, uma espécie de eixo dessa formulação não central de cultura e cidade, demolida para dar lugar ao complexo rodoviário da Lagoinha, triste gesto eternizado no samba de Gervásio Horta chamado “Adeus, Lagoinha”.
É de se perguntar, portanto, como fazer viver, cultivar algo ou, poderíamos dizer, fazer cultura em um terreno tão árido. A memória do samba da cidade, assim como seus grupos tradicionais de carnaval, não cansam de nos dizer sobre isso. Resta escutá-los.
Vale lembrar que por aqui o carnaval já passou por momentos de imensas crises. Agonizou, sem morrer. Talvez o leitor acostumado às multidões de dois anos atrás se lembre, com algum esforço, das ruas desertas e dos desfiles empurrados para a Via 240 há pouco mais de uma década.
Os mais velhos vão se lembrar, por outro lado, da década de 1980, quando éramos o segundo maior carnaval de avenida do Brasil. Mas o que acontece? Apesar das insistentes forças pelo esvaziamento do carnaval em BH, parece haver um fio de memória fundado há muitos anos, como nos lembra Dona Eliza, que faz essa história nunca desaparecer por completo do nosso tecido urbano.
No seu samba, ela continua: “Ao sair lá da Pedreira e andar pelo Morro das Pedras, pra chegar no Acaba Mundo depois de passar pela Serra”, nos dizendo um pouco sobre como, onde e quem fez sobreviver essa tradição em meio a tanta destruição. E, vale dizer, guardar tradições nesta cidade é e sempre foi, não há outra palavra, resistir.
Eu também sou, há mais de 10 anos, puxador de bloco, um regente, como dizem. Nesse sentido, tenho consciência de que essas histórias me atravessam quando estou ali cumprindo esse papel no carnaval. Elas vêm de muito antes e vão muito além do que posso enxergar. Me cabe respeitá-las, mas também ajudar a cultivá-las e fazê-las ir adiante. Como dizia Lourdes Maria, saudosa sambista da cidade, é preciso “cavar pra frente”.
Penso que o carnaval há de sobreviver a mais essa crise. Não sem esforços e perdas. Mas sobreviverá. Pois vale lembrar que em um temporal como esse que vivemos, fica em pé quem tem raízes profundas. É, portanto, urgente cultivar essas raízes: nomear seus mestres, respeitar-lhes a memória, os espaços e os trabalhadores da festa. Fazê-los sobreviver.
Falando abertamente: em um momento desses, é preciso urgentemente garantir, no mínimo, auxílio aos trabalhadores da cultura de carnaval da cidade, os de ontem e os de hoje. Afinal, sem densidade alguma, um chão para pisar, o carnaval é vento. Evento sem passado ou futuro algum. Ou seja, passará.
A SEÇÃO 'BLOCO NA RUA', PUBLICADA AOS DOMINGOS NA COLUNA HIT, TRAZ TEXTO SOBRE O CARNAVAL ESCRITO POR UM CONVIDADO E FOTO DE FOLIAS DE OUTROS TEMPOS