As peças criadas por Daniel Bahia Gontijo fazem uma provocação: afinal, os produtos, facas para diferentes tipos de corte, podem ser definidos como objetos de arte ou objetos de design? "Na minha definição, meu produto é uma ferramenta, concebida por um projeto de design desenvolvido ao longo de anos e que permite adicionar um certo teor de arte, com minha expressão individual”, afirma o cuteleiro, de 33 anos. Formado em design de produto, ele trabalhou por alguns anos em agência de design com foco em sustentabilidade até, como ele mesmo diz, "ser fisgado pela cutelaria".
Daniel tem no catálogo da sua marca própria (organicknives) 13 modelos de facas. "A maior parte delas é destinada para a gastronomia, algumas mais coringas, outras mais específicas. Tenho dois modelos para o campo e, no futuro, pretendo atingir outras áreas".
No mundo da cutelaria, a maior parte das ferramentas são padronizadas. "Mas como cada cuteleiro acaba desenvolvendo suas próprias técnicas, algumas ferramentas eu criei do zero", observa, acrescentando que, aos poucos, "com a grana das próprias facas", também montou a estrutura que mantém na fazenda da família. "Felizmente, é possível fazer facas com uma estrutura relativamente simples", diz. Já com relação à matéria-prima, Daniel considera "um belo desafio, pois o fornecimento de materiais de alto nível no Brasil é escasso".
Sua formação acadêmica é de designer de produto, mas foi por acaso, na fazenda com seu pai, que surgiu o seu interesse pela cutelaria. A partir daí, o que mudou em sua vida profissional e o seu olhar para um objeto que, normalmente, não tem muito charme?
A cutelaria abriu todo um universo em minha vida profissional. Por um lado, o design é essencial para a minha percepção e desenvolvimento do produto, mas durante o curso não é possível aprofundar nos processos produtivos de uma atividade específica. O conhecimento e prática necessários para a cutelaria são tão vastos que se tornaram uma segunda "graduação" pra mim. Eu já tinha um certo encanto por facas, e durante o curso de design adquiri um grande valor por ferramentas relativamente simples, como a faca, que permitem resolver uma infinidade de necessidades e até criar outras ferramentas. Uma visão contrária à tendência de se criarem objetos cada vez mais complexos para resolver necessidades simples.
Seu pai, que sempre gostou de trabalhos manuais, descobriu os segredos da cutelaria na raça. Como você driblou as dificuldades de um ofício que agora começa a ganhar destaque? O History, por exemplo, tem o programa “Desafio sobre o fogo” em um universo mais amplo da cutelaria.
A contribuição do meu pai (Pedro Nogueira Gontijo) foi essencial na introdução da atividade. O vasto conhecimento dele de processos produtivos manuais me deram uma base excelente. Com o tempo, expandi minhas capacidades com muita pesquisa, prática e experimentações. Em muitos momentos, o processo de evolução é delicioso, mas em vários outros é bastante sofrido.
Você já fez vendas para o exterior, tem clientes espalhados pelo Brasil. Como foi descobrir o mercado e, ao mesmo tempo, descobrir as técnicas, matéria-prima e conquistar o consumidor?
A introdução ao mercado se deu de forma bem fluida. Bem no início, enquanto ainda estava aberto para qualquer nicho, senti uma demanda de pessoas próximas por uma boa faca de cozinha e acabei seguindo essa vertente. Com o tempo, entendi que essa procura era muito maior do que imaginava, principalmente por causa do "boom" da gastronomia no Brasil nos últimos anos. Hoje em dia, as pessoas usam facas quase apenas para cozinhar. A partir daí, foquei meu projeto nesse universo. O desenvolvimento das técnicas e a evolução do produto acontecem de forma natural. O fato de ser o designer e o executor de todo o processo me permite apurar a percepção do produto a todo momento, além do diálogo com o público. Esse aperfeiçoamento já acontece há quase 10 anos.
Além da preocupação com a eficiência do corte, você tem olhar para a questão da sustentabilidade através de reaproveitando de madeira de demolição, de poda... Qual a importância de sermos uma sociedade preocupada com a sustentabilidade?
A importância de nos preocuparmos com sustentabilidade é bem simples: sem ela não existirá sociedade. A questão madeira é uma das formas com a qual tento incluir isso na ORK, utilizando fontes desvinculadas do extrativismo perverso. Busco madeiras de demolição, móveis descartados, árvores que caem em tempestades, entre outras fontes, o que é bem comum na cutelaria artesanal. Mas a característica de sustentabilidade mais importante do projeto é a durabilidade do produto. A ideia é ter uma excelente ferramenta para toda a vida. Nesse âmbito, até aspectos mais subjetivos – como o teor de arte do produto – contribuem para o valor de estima do usuário, o que leva a uma maior conservação e por fim, menos descarte.
Uma faca leva cerca de 15 horas para ficar pronta. É um trabalho de arte. Como você define seu processo criativo?
A minha compreensão do processo criativo mudou muito ao mergulhar em trabalhos manuais. No design, focamos muito em várias etapas de concepção anteriores à fabricação final, como briefing, brainstorms, geração de alternativas, pesquisa do estado da arte, prototipagem, entre outras, o que é muito valioso. Mas a cutelaria me mostrou que o contato direto e constante com os materiais, entender a fundo como eles se comportam em diversas situações, mostra uma amplitude de possibilidades muita além do que o papel e caneta proporcionam.
Qual a importância do designer para quaisquer produtos, desde os que fazem parte do dia a dia até os mais sofisticados?
O designer pode contribuir em diversos aspectos. Da concepção de um produto inusitado para solucionar alguma necessidade, ao aprimoramento de produtos existentes. Em termos objetivos, pode gerar maior eficiência (fazer mais com menos), melhorar a interface entre produto e usuário, reduzir impacto ambiental, otimizar processos produtivos, etc. E pode gerar valores subjetivos, como estética, impacto emotivo, comunicação de valores e outros pontos ligados a arte.