Gorki e a ditadura
Jota Dangelo,
dramaturgo
Os primeiros anos da década de 1970 ficaram caracterizados pelo autoritarismo ditatorial, perda dos direitos humanos e censura rigorosa, instaurados pelo Ato Institucional Número 5 (AI-5), promulgado em 13 de dezembro de 1968. Por essa razão, os grupos teatrais passaram a optar, para suas encenações, por antigos textos, mas cujos temas, em menor ou maior grau, ainda que metaforicamente, podiam ser percebidos pelo público como críticas ao regime militar que dominava a política no país.
Esse foi o motivo pelo qual O Grupo (ex-Teatro Experimental) escolheu “Pequenos burgueses”, do russo Máximo Gorki, escrito nos primeiros anos do século 20, como o espetáculo a ser encenado no Teatro Marília, no segundo semestre de 1978.
A primeira versão da peça foi feita e aplaudida com entusiasmo e absoluto sucesso pelo Grupo Oficina, de São Paulo, sob a direção qualificada de José Celso Martinez Corrêa. Entretanto, a versão de O Grupo, de 78, não ficava restrita ao texto de “Pequenos burgueses”, como ressalta o crítico teatral Luiz Carlos Bernardes, na sua coluna no jornal Estado de Minas: “Numa das melhores produções da safra 78/79, a reapresentação de ‘Pequenos burgueses’ deve ser revista. Dangelo, na direção, monta um espetáculo de alto nível. Realista, denso e bem-enxuto, equilibrando com talento o espetáculo e a mensagem, sem cair no falso didatismo. Preocupado em trazer à cena um Gorki multifacetado, Dangelo junta a ‘Pequenos burgueses’ trechos de ‘Os veranistas’, ‘Ralé’ e ‘Os inimigos’, num espetáculo uniforme, cuja homogeneidade é também garantida pelo bom elenco”.
Dos 13 atores do elenco, oito eram de O Grupo: Helvécio Ferreira, Eliane Maris, Sonia Valadares, Ligia Lira, Mamélia Dornelles, Jota Dangelo, José Maria Amorim e Raul Belém Machado. Completavam o elenco as atrizes e os atores convidados Ada Mabillot, Romilda Leão, Arildo de Barros, Javert Monteiro e Geraldo Roberto Peninha. Na temporada de Brasília, em maio de 79, e na reapresentação da peça logo em seguida, no Marília, a atriz Romilda Leão foi substituída por Wilma Henriques.
O espetáculo foi um sucesso de público nas duas temporadas em Belo Horizonte e na curta temporada de Brasília, com seis apresentações no Teatro Martins Pena, mas teve que apresentar uma sétima, especial, atendendo a uma solicitação da embaixada russa, que queria uma sessão para seus próprios convidados.
O Grupo contou, no espetáculo, com uma das obras cenográficas mais bem projetadas e construídas pelo talento incomparável do arquiteto Raul Belém Machado: uma sala de entrada de uma residência russa dos anos iniciais do século 20. Na crítica de Bernardes não falta a referência: “A cenografia de Raul Belém Machado é outro destaque. O belo samovar de prata reina, boa parte do espetáculo, no centro do palco, como símbolo dos valores que se tenta, inutilmente, preservar. Belo o final do espetáculo: Vassilevitch, quase só, angustiado, vê a vida invadir sua casa pelas vozes dos operários que cantam nas ruas”.
“Pequenos burgueses” foi escrito nos primeiros anos do século 20 (1904), quando, na Rússia, sob o czarismo, a monarquia estava sendo colocada em dúvida, sob suspeita, pela propaganda das teses de Karl Max – divulgadas a distância por Lênin – e pelos movimentos operários que se estavam iniciando, ainda que timidamente, contra a nobreza e a burguesia, incluindo a ‘pequena burguesia’, justamente a da família de que trata a peça. Mas na família ‘burguesa’ de Bessemenov, um burguês conservador, moralista em excesso e monarquista, os jovens, filhos e filhas, estavam ao lado dos operários que, nas ruas, entoavam seus hinos de protesto e suas palavras de ordem.
Assim, em 1978, com a ditadura militar aos trancos e barrancos, em declínio, a encenação da peça de Gorki estava mais que justificada. E foi essa a razão pela qual acrescentei ao texto outras considerações de Gorki em outras de suas peças, para reafirmar o tom político-social de “Pequenos burgueses”.
Não creio, entretanto, que a realidade de hoje tenha semelhança com a daquela época. Hoje, o que espanta a esquerda é ver a direita, ou melhor, a centro-direita no poder, depois que ela dominou politicamente o país por quase 14 anos, e a centro-direita perceber que não é fácil governar com alternativas direitistas, num regime plenamente democrático, com instituições funcionando, embora nem sempre de maneira razoável. Creio que a situação atual necessita de textos atuais, escritos agora, que discutam cenicamente a batalha eleitoral que será travada em breve.
ÀS SEXTAS-FEIRAS, A COLUNA HIT PUBLICA A SEÇÃO “TERCEIRO SINAL”, NA QUAL DIRETORES, ATORES E PRODUTORES ESCREVEM SOBRE PEÇAS QUE FIZERAM SUCESSO ENTRE OS ANOS 1960 E 1990 E COMO SERIA A REAÇÃO DO PÚBLICO SE ELAS FOSSEM REMONTADAS.