A ironia de um título
Sérgio Abritta
Diretor e dramaturgo
De todas as minhas peças, certamente “Eu te amo, ditadura”, encenada em 1993, no Teatro João Ceschiatti, é a que me traz melhores lembranças. Quando comecei a escrever o texto, não tinha completado 30 anos e as memórias das reuniões e namoros nos corredores da Fafich ainda eram muito recentes. Levei três anos para escrevê-la – de 1989 a 1992 – e, quando tudo parecia pronto, veio o movimento dos caras-pintadas.
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Além disso, me encontrei com vários amigos e até com alguns inimigos da época do movimento estudantil, para compreender melhor acontecimentos dos quais participei apenas do lado de fora, como o 3º Encontro Nacional do Estudantes, realizado no DA Medicina, em 1977, quando muitos estudantes foram presos e enquadrados na Lei de Segurança Nacional.
A famosa foto da saída dos estudantes abraçados da Faculdade de Medicina da UFMG funcionava quase como símbolo da peça, que usava uma centena de slides para ajudar na contextualização dos fatos. Os acontecimentos políticos passam em profusão na cena, como o Congresso de Reconstrução da UNE, em Salvador, a anistia, a campanha pelas diretas, a criação do PT, a morte de Tancredo e as eleições de 1989.
Eu pretendia fazer uma reconfiguração da memória, de forma fragmentada, misturando coisas, lugares e tempos heterogêneos, mas todos ligados à ditadura militar, para pensar um pouco como um regime despótico pode acabar por definir nossas vidas, individual e coletivamente.
O arco dramático era delineado pelas mudanças drásticas que as personagens sofriam. Essas transformações faziam com que a peça às vezes fosse muito bem-humorada. A visão de Rui sobre sua própria sexualidade, por exemplo, era completamente modificada pelo contato com ideias que ele nem de longe supunha existirem antes de entrar na faculdade, o que causava a imediata empatia do público.
Não posso deixar de mencionar a brilhante direção de Wilson de Oliveira, que soube captar com perfeição aquilo que a dramaturgia propunha, fazendo um espetáculo criativo e instigante, bem como as atuações primorosas de um elenco jovem, composto por Cristiane Fernandes, Helena Soares, Fernando Gomes e Paulo Rezende, que se jogou de cabeça na encenação. Para completar, havia o cenário provocativo desenhado por Raul Belém Machado.
A montagem teve uma repercussão tão grande em Belo Horizonte que acabou sendo levada para São Paulo, onde esteve em cartaz, em 1994, nos teatros Cacilda Becker, Paulo Eiró e João Caetano.
Se reencenada hoje, talvez a peça fosse alvo da cultura do cancelamento por parte de pessoas e movimentos que, inacreditavelmente, lutam para destruir a democracia. Ou talvez essas pessoas, com sua visão limitada do que é viver em comunidade, lotassem o teatro, incapazes de perceber a ironia de um título que queria expressar, antes de tudo, ódio visceral ao regime que desrespeitou os direitos fundamentais mais básicos, entre os quais a vida e a liberdade.
*ÀS SEXTAS-FEIRAS, A COLUNA HIT PUBLICA A SEÇÃO “TERCEIRO SINAL”, NA QUAL DIRETORES, ATORES E PRODUTORES ESCREVEM SOBRE PEÇAS QUE FIZERAM SUCESSO ENTRE OS ANOS 1960 E 1990 E COMO SERIA A REAÇÃO DO PÚBLICO SE ELAS FOSSEM REMONTADAS.