Jornal Estado de Minas

ENTREVISTA DE SEGUNDA

Quermesse da Mary chega à 19ª edição, no fim de semana, com 45 artistas

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'O coletivo é a nossa chance de sobrevivência'

 
Diretora criativa de uma das marcas mais importantes da moda mineira, Mary Figueiredo Arantes não pensa em reabrir a empresa, fechada há quase cinco anos. “Só tenho a agradecer ao mundo da moda e à Mary Design, pois me fizeram chegar até aqui, ser quem sou e como sou. Percebi nitidamente que um ciclo havia se fechado. Precisamos ter consciência disso, novas marcas estão por vir e construirão outras histórias. Estou aqui pronta para ajudá-las, seja em consultoria gratuita, como na quermesse, ou paga”, comenta.




 
Por enquanto, os olhos e o coração de Mary vibram com a Quermesse, criada por ela, que completa 19 edições no fim de semana. “O evento tem importância relevante no setor e na cidade. Pessoas que fizeram curadoria para expositores o consideram a formatura do artista. Temos poucos espaços assim, sejam lojas ou feiras, que suportem o tamanho da demanda, que representem o criador local. Minas é um celeiro de artes”, afirma.
 
Você idealizou um dos maiores bazares de BH, o Bazarte, que funcionou por 14 anos no Minas Tênis Clube. Reunia cerca de 100 expositores. De lá pra cá, o que mudou?
Mudou muito. Tanto o mercado como o artesão, que deixou de ser um simples artesão, passando a fazer o que hoje tem sido nomeado como design artesanal. O que percebo é a mudança do mercado devido às dificuldades na economia e aumento do desemprego. O artesão/artista de hoje tem formação superior: são farmacêuticos, designers, engenheiros. Só nesta 19ª edição da Quermesse teremos seis arquitetos. Esse perfil trouxe mudança significativa para o setor. Olhar apurado, estética mais que perfeita e conhecimento de causa, o que muda tudo – do tamanho da coleção e da escolha de materiais à ocupação do espaço a ser utilizado. Antes, o artesão, além da mesa oferecida a ele, queria colocar uma grade, um tripé para dependurar mais produtos. Por outro lado, a evolução trouxe a tecnologia, as mídias sociais, a venda pelo Instagram. Promovo no evento o encontro dos jovens com os mestres. Se a marca não tem Instagram, já sai de lá de Instagram novo. Outra percepção é a do coletivo, que antes existia timidamente. Na moda, onde atuei por anos, isso nunca existiu. Cada um tinha seus contatos em total sigilo.

Qual é a importância da internet para o setor?
A internet escancarou endereços secretos, hoje só fica escondido quem quer. Pequenos produtores, em sua maioria jovens talentosos, perceberam que teriam que dar as mãos. Um faz a caixa, o outro a alça, numa collab artística com o intuito de ampliar seus públicos e aumentar a visibilidade e as vendas. A pandemia acirrou ainda mais essa percepção. Como diz o Emicida, “tudo que noiz tem é noiz”. Eu tenho os contatos, a rede de relacionamentos, o conhecimento como curadora e eles têm o produto e a criação. Se somarmos isso tudo, dá jogo demais.





Qual foi a estratégia do artesão para sobreviver durante a pandemia?
A ajuda de custo da Lei Aldir Blanc pagou muita conta e deu comida a muitos. Divulguei a lei em nossos grupos como forma de ajudar. Sem sombra de dúvida, o que salvou o artesão foi a venda pela internet. Quem não tinha sites de venda correu pra fazer... O fato de não termos eventos durante grande parte da pandemia fez com que muitos expositores pensassem em parar. Muitos questionaram: ‘Será que o problema é o meu produto?’. Não, não era o produto. Outros se descobriram artesãos nesse período e viram o quanto eram infelizes com o que faziam antes. A vida passou a ser relevante e a qualidade dela também. Fizemos dois eventos em meio à pandemia, com todos os protocolos exigidos. Muitos artesãos saíram chorando ao final, pois as vendas foram significativas para todos. De mãos dadas, descobrimos que poderemos mudar o mundo! O coletivo é a nossa chance de sobrevivência.

O trabalho de curadoria da Quermesse, destinado a artesãos, deve trazer informações interessantes sobre formas de trabalho. Como você analisa esse universo?
Beber na fonte é a minha alegria. Em cada ateliê que visito, percebo a importância de conhecer o espaço imantado do artista e a alma de cada um. O entorno fala por ele, pode ser um trabalho inacabado num canto à espera de um clique, o material a ser aproveitado, uma peça empoeirada à espera de ser ressuscitada. Surgem ali mil possibilidades. Muitas vezes, o criador se sente enovelado pela própria teia de lã que criou. Meu trabalho é ajudá-lo a experimentar novos caminhos. Costumo chamar esse trabalho de troca de saberes: eu aprendo com eles e eles comigo.

A Mary Design teve carreira bem-sucedida por 35 anos, a partir de 1982. Como as mulheres viam a bijoux nos anos 1980 e como ela é vista hoje?
A Mary Design surgiu da minha necessidade como consumidora. Se não tinha dinheiro pra comprar, o jeito era fazer. Guimarães Rosa diz que sapo pula não é por boniteza, mas por precisão. A carga criativa do Vale do Jequitinhonha veio comigo, carregada de barro, pó da estrada e músicas ribeirinhas. Naquele tempo, não existia absolutamente nada para se pesquisar. As referências eram próprias, vividas. Criei algo autoral, que não existia, carregado do feito à mão, que era o que vi na minha infância. O seleiro que fazia a sela, a paneleira que fazia a panela de barro, a cantiga de reis em noite de lua e os ternos que meu pai, alfaiate, fazia tiveram grande influência no estilo da marca. Uma das primeiras peças de sucesso foram as pencas carregadas de santos, medalhinhas de batismo, pedras usadas como talismãs, sementes trazidas de um canto qualquer do mundo, tudo significativo. Minha ideia era fazer com que o artesanato galgasse outro patamar, passasse a ser algo desejado, como a joia.





Há cinco anos, você fechou a empresa. Para onde está canalizando sua energia criativa?
Hoje fica mais fácil falar desse assunto. Ter empresa de bijoux com mais de 60 funcionários, nos dias atuais, é quase impossível. A cada coleção, o pagamento das feiras era uma verdadeira fortuna. Sem contar o custo dos catálogos impressos, outra fortuna. Era preciso uma reestruturação tão grande para nos adaptarmos aos novos tempos que preferi fechar. Hoje me abasteço com as curadorias que faço, inclusive para empresas de bijuteria. Me alimento da criação dos novos talentos que chegam a mim, eles me fortalecem. É como se estivesse construindo uma rede de pessoas para me suceder, sinto necessidade de passar pra frente o que aprendi.