Cida Falabella
Atriz e diretora de teatro
Creio que, das artes, o teatro foi a que mais sentiu esses tempos de pandemia. Arte da presença, que se realiza na relação com o outro, tivemos que nos “trair” e estabelecer novos pactos com o espectador para continuar vivos. Um processo que nos levou a pensar e perguntar inutilmente: isso é teatro?
Agora, aos poucos, estamos ousando voltar, na força de resistência da legião do teatro. Mas como voltar, o que dizer, pra quem, por que, se as imagens da realidade, o excesso de informação e de atuação nos engolem todos os dias?
Agora, aos poucos, estamos ousando voltar, na força de resistência da legião do teatro. Mas como voltar, o que dizer, pra quem, por que, se as imagens da realidade, o excesso de informação e de atuação nos engolem todos os dias?
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feita coletivamente.
A obra traduzia as inquietações da turma e tinha grande potencial cênico. Durante meses, vivemos em uma sala de ensaio dando forma a uma história absurda, que falava de um mundo mergulhado na escuridão de uma cegueira metafórica: das relações, do consumo, da desigualdade, do machismo.
A montagem foi feita na própria sala de ensaio, transformada pelas mãos do genial Raul Belém Machado, dando vida ao manicômio abandonado, onde a luta pela sobrevivência produziu dor e destruição. A travessia dessa jornada de horrores, conduzida por uma mulher, trouxe a certeza de uma transformação necessária, pessoal e coletiva.
As sessões eram para um público de apenas 40 pessoas, que viviam junto dos atores a experiência do confinamento. Meses depois, o autor se tornou Prêmio Nobel de Literatura. Quando penso hoje em remontar um texto, logo me lembro desse.
Acho que ele poderia traduzir profundamente tudo o que vivemos: a pandemia que colocou uma lente de aumento nas nossas relações e na sua ética, os ataques à democracia e nossa impotência, as fake news, a escalada fascista. E assim cumpriria o papel do teatro, que é fazer o público refletir sobre o mundo e a sociedade que estamos construindo.
Acho que ele poderia traduzir profundamente tudo o que vivemos: a pandemia que colocou uma lente de aumento nas nossas relações e na sua ética, os ataques à democracia e nossa impotência, as fake news, a escalada fascista. E assim cumpriria o papel do teatro, que é fazer o público refletir sobre o mundo e a sociedade que estamos construindo.
Em 2006, com a ZAP 18 em atividade e o grande desafio de dialogar com a periferia onde estávamos, influenciados pela teoria e prática do teatro épico de Brecht, decidimos trazer a história de “Mãe Coragem e seus filhos”, de Brecht, para a favela brasileira, guiados pela força do livro “Cabeça de porco”, de MV Bill, Celso Athayde e Luiz Eduardo Soares.
Com dramaturgia do mestre Antonio Hildebrando, música ao vivo com inventivos arranjos de Maurílio Rocha e um elenco diverso e multigeracional, tendo a atriz Elisa Santana à frente, a abordagem da violência, tanto policial quanto das milícias nas periferias brasileiras, apresentada em um galpão longe do Centro, atraiu grande interesse, fazendo o público atravessar a cidade.
Na montagem de “Esta noite Mãe Coragem”, que trazia dados sobre o genocídio da juventude negra brasileira, nós perguntávamos ao público: “O que você tem a ver com isso? Mais do que possa imaginar!”. Era nossa resposta provocativa, convidando o público a dar seu depoimento,
a pensar sobre as causas da violência e do racismo estrutural.
O que mudou em 16 anos? Os jovens negros continuam morrendo pelas mãos do Estado ou com a conivência dele. Por isso, creio que essa peça, em chave épica, seria ainda mais impactante hoje e traria o público para refletir e compartilhar sua experiência, sobretudo se os jovens que podem ser o alvo estiverem em cena contando suas histórias. E suas mães também, as mães coragens das periferias do Brasil.
Encerro com o pensamento de Brecht: “O teatro tem de se comprometer com a realidade, porque só assim lhe será possível e lhe será lícito produzir imagens eficazes da realidade”. Esse é o desafio. Ontem e hoje.
. ÀS SEXTAS-FEIRAS, A COLUNA HIT PUBLICA A SEÇÃO “TERCEIRO SINAL”, NA QUAL DIRETORES, ATORES E PRODUTORES ESCREVEM SOBRE PEÇAS QUE FIZERAM SUCESSO ENTRE OS ANOS 1960 E 1990 E COMO SERIA A REAÇÃO DO PÚBLICO SE ELAS FOSSEM REMONTADAS.