Jornal Estado de Minas

TERCEIRO SINAL

Censurado na ditadura, 'Liderato, o rato que era líder' é marco no teatro

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Pedro Paulo Cava
Diretor


O ano era 1967. Os jornalistas André Carvalho e Gilberto Mansur, ambos do Estado de Minas, resolveram escrever uma peça de teatro para crianças que falasse de eleições. Para quem não sabe, estávamos no início da ditadura, e as eleições haviam sido suspensas em todo o país.





Assim nasceu a genial história de “Liderato”, um rato aventureiro, populista, sem maiores compromissos com o povo e que distribuía queijo aos eleitores em troca de voto. A história se passa num país chamado Ratolândia, que vivia sob a ameaça constante de um terrível gato, que devorava qualquer ratinho que encontrasse pelo caminho. 

Essa personagem era caracterizada como uma mistura de Tio Sam e Nosferatu, o que dava a ela um aspecto assustador. Pois é, naquele país habitavam milhares de ratinhos que teriam que escolher entre Liderato, o falso líder, e Ratildo, o líder verdadeiro, preocupado com os problemas do povo e do país. 

A eleição parecia perdida para este candidato que fazia uma campanha sem recursos, enquanto seu rival, Liderato, era rico, se vestia bem e tinha recursos para iludir o povo da Ratolândia com uma farta distribuição de queijos.





Por que estou contando aqui, mais de 50 anos depois, essa história? Ao repassar na memória os fatos daquela época, fico feliz em ter participado como ator, aos 17 anos, de um dos maiores sucessos do teatro infantil brasileiro.

Na verdade, tudo conspirou para que “Liderato, o rato que era líder” fosse um estrondoso sucesso de público e crítica e se transformasse num espetáculo que foi assistido por milhares de crianças e adultos durante os dois anos em que esteve em cartaz. 

Sob a batuta de Helvécio Ferreira, criativo diretor com uma longa experiência na montagem de textos infantis, 12 atores se reuniram para dar forma e levar à cena aquele que viria a ser um dos marcos do teatro infantil em Belo Horizonte e também um divisor de águas entre o teatro amador e o profissional no fazer teatral da cidade.





O maestro Aécio Flávio compôs as canções da peça, e o cartunista Rujos ilustrou cartazes e criou um programa que era uma história em quadrinhos. Joaquim Costa idealizou os figurinos, Dulce Beltrão criou as coreografias para a peça, e Irene Abreu desenhou a cenografia.

“Liderato” estreou no início de 1967 no Teatro Marília, e permaneceu em cartaz até 13 de dezembro de 1968, quando foi proibido pelo AI-5, assim como centenas de espetáculos teatrais, livros, músicas e filmes por todo o Brasil.

A importância dessa montagem foi reveladora daquele momento em que, amordaçada, a sociedade buscava saídas para protestar contra a presença dos militares no poder. “Liderato” podia ter duas leituras: uma para o público infanto-juvenil, que era lúdica e didática, ensinando democracia, a necessidade do voto e do exercício da cidadania de maneira colorida, alegre e eficaz. Ao final do espetáculo, as crianças subiam ao palco e votavam no melhor candidato. 





Outra e mais eficiente era o texto dirigido aos adultos, que falava sobre a violência dos militares contra os estudantes e civis em geral, da liberdade de se expressar e escolher e clamava por justiça social e democracia. Estava tudo lá no texto, na boca dos atores, e ficava bailando na cabeça dos espectadores. Por isso tantos pais e crianças voltavam muitas vezes ao teatro. 

“Liderato” se tornou um programa imperdível. Fazíamos, como era de costume, três apresentações nos fins de semana: sábados, às 16h; e domingos, às 10h30 e às 16h. Chegamos a apresentar duas vezes nos domingos pela manhã, porque o público excedia a lotação do teatro e ficava à espera de uma nova sessão, ao meio-dia.

Escolas, entidades, sindicatos e empresas compravam apresentações nos dias de semana, de terça a sexta-feira, pela manhã e à tarde. O elenco passou a obter sua sobrevivência da bilheteria, que era dividida a cada semana pelos integrantes do TIP – Teatro Infanto-Juvenil Popular, grupo que fundamos em 67 e tinha o caráter de uma cooperativa, onde todos eram cotistas com o mesmo percentual, incluindo aí os autores.





André Carvalho era editor do Estado de Minas, onde mantinha o caderno Gurilândia. Era também “reitor” da “Universidade Popular da Manhã”, programa educativo levado ao ar pela TV Itacolomi, também pertencente aos Diários Associados. O apoio desses dois veículos de comunicação foi fundamental para o sucesso da peça e até os veículos de comunicação de outras empresas abriam generosos espaços para o nosso espetáculo. 

Enfim, de alguma forma todos participavam da conspiração para o sucesso. Em 1968, gravamos o espetáculo em disco na Bemol, naquela época a maior gravadora de Minas. Os discos eram vendidos nos teatros e nas escolas. Até hoje, encontro pessoas que me dizem ter guardadas com muito carinho as nossas velhas bolachas de vinil.

O sucesso da peça deu muita visibilidade a toda a equipe, especialmente aos atores. Uma grande parte já faleceu e outra sumiu simplesmente. Mas todo o frenesi em torno de “Liderato” trouxe problemas com os militares. O famoso e temido coronel Medeiros levou os filhos para assistirem ao espetáculo e, no dia seguinte, convocou ao quartel do CPOR o diretor e os autores do espetáculo. Munido de uma cópia do texto onde havia feito cortes substanciais, exigiu que fossem rigorosamente acatados, se quiséssemos manter o espetáculo em cartaz. Assim foi feito, e em todas as apresentações da peça, nos fins de semana havia, um oficial do Exército na plateia acompanhando com o roteiro na mão se realmente tínhamos cumprido a determinação do chefe da repressão em Minas. 





Mas os espetáculos vendidos nos dias de semana fazíamos na íntegra, como forma de protesto, desobediência e certo gosto de vingança. Era um risco que corríamos conscientemente. “Liderato, o rato que era líder” foi um caso de quase unanimidade e assunto em qualquer boa roda de conversa. Enfim, estava na boca do povo. Olhando para trás, vejo que “Liderato”, especialmente hoje, às vésperas das eleições gerais, seria mais que nunca essencial para se entenderem valores como o voto consciente, humanidade, cidadania e democracia. Quem se arrisca a uma nova montagem?