Paulo César Bicalho
Diretor
Quando “A noite dos assassinos” foi encenada, em 1969, cinco anos após o golpe civil-militar de 1964, a institucionalização e radicalização da ditadura se manifestaram pela emissão do AI-5, em dezembro do ano anterior — ele permitia a censura indiscriminada a todos os setores da sociedade e institucionalizava a prisão e tortura de qualquer cidadão, particularmente ativistas, políticos, intelectuais e artistas.
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Num certo momento, por exemplo, acrescentamos uma cena ao roteiro de Triana: o irmão entrava subitamente pela plateia carregando um galo. Subia até o palco e ajoelhava-se numa mesa colocada junto ao proscênio, bem próxima do público. Após um momento de silêncio, o ator rasgava com uma faca o pescoço do galo.
O sangue esguichava na direção dos espectadores. As irmãs se aproximavam, molhavam os dedos no sangue e desenhavam, junto com o irmão, nos próprios rostos, traços vermelhos que os acompanhavam até o fim do espetáculo. Dessa forma, buscávamos generalizar os personagens, tornando seus significados mais amplos — não se tratava apenas dos acontecimentos dolorosos de uma família patriarcal, mas também de algo cruel e sangrento que se alastrava no regime.
Os objetos do cenário eram usados de forma absurda, como se o universo tivesse degringolado e não houvesse mais limite, a sensação que perseguia o público em geral diante dos acontecimentos tenebrosos. Em cena, o ator, por exemplo, sentava na cadeira com os pés pra cima e a cabeça virada para o chão. Além disso, na sala onde estavam os personagens acontecia de tudo que costuma ocorrer em outros ambientes, acompanhando um refrão que cantavam aqui e ali: “A sala não é a sala, a casa não é a casa…”.
Durante o decorrer das cenas do espetáculo, os atores produziam sons e movimentos que sugeriam ações que feriam os “bons costumes”, um dos pilares da melopeia dos agentes mais cruéis da ditadura. Os ruídos e sacudidelas da irmã deitada numa mesa, agora colocada ao fundo, lembravam a masturbação, enquanto o irmão tentava se descrever de forma bem comportada como os varões da sua tradicional família.
Quando um personagem tinha algo importante para tratar e desejava a atenção dos irmãos, dirigia-se ao quadro de luz que fora montado no fundo da cena e modificava a iluminação, criando ambientes diferentes de acordo com sua ação. Às vezes, surgiam luzes de refletores colocados no chão, noutros momentos o público era iluminado como se estivesse fazendo parte da cena. O realismo, que poderia centralizar a percepção do espectador em torno apenas de uma família particular, era sacudido.
Ao final, uma irmã, que se manifestara discretamente até então, arranca a blusa deixando os seios nus, e termina o espetáculo com a advertência: “Agora é a minha vez!”. O público, habituado com peças realistas, demorava um tempo para reagir. Mas logo a seguir surgiam risadas contínuas que mostravam seu envolvimento no espetáculo.
O interessante é que a busca disfarçada de críticas à ditadura, como ocorreu com outros espetáculos da época, tornou “A noite dos assassinos” um acontecimento tão singular e original que, se fosse reconstruído novamente hoje, teria, talvez, junto ao público uma poderosa capacidade de provocação de significados renovados.
Principalmente quando temos no comando do país uma pessoa de formação militar, machista, defensora da ditadura e ineficiente no combate à pandemia e à recuperação econômica.
ÀS SEXTAS-FEIRAS, A COLUNA HIT PUBLICA A SEÇÃO “TERCEIRO SINAL”, NA QUAL DIRETORES, ATORES E PRODUTORES ESCREVEM SOBRE PEÇAS QUE FIZERAM SUCESSO ENTRE OS ANOS 1960 E 1990 E COMO SERIA A REAÇÃO DO PÚBLICO SE ELAS FOSSEM REMONTADAS.