Muitas histórias em uma
Luiz Hippert
Diretor
“Nessa cidade todos têm felicidade” foi uma produção marcante na minha carreira. Se não fossem outros motivos, ter sido a última (até agora) já seria razão mais do que suficiente para torná-la especial.
Como que antevendo essa despedida (involuntária), fiz de tudo, não somente produzi o espetáculo. Também o escrevi e dirigi. Foram muitos meses de ensaio e experimentação do texto, uma vez que a intenção era fazer algo inusitado, uma narrativa que surpreendesse o público de maneira bem original. Eu mesmo, que me lembre, nunca havia visto nada semelhante no palco.
Mas, por fim, foi uma preparação longa para uma vida breve. Fizemos curta temporada em BH e pequena turnê pelo interior de Minas. Aliás, subvertendo essa ordem, estreamos em viagens para só então, alguns meses depois, nos apresentar em Belo Horizonte.
Abandonar tal projeto não foi uma decisão fácil de tomar, porém a justificativa é das mais coerentes. Após o encerramento da temporada, dois dos atores saíram da produção por motivos pessoais. Fazer duas substituições praticamente a toque de caixa não me pareceu viável, diante de toda a complexidade daquela ideia que tínhamos valorizado tanto. O processo vivido pelo grupo não seria o mesmo, agora quebrado pela entrada de duas novas pessoas. Além disso, havia o retrabalho a ser imposto aos que permaneceram no elenco.
Tudo ponderado, decidimos interromper as negociações das novas temporadas e, quem sabe, futuramente voltar ao início da jornada, refazendo tudo com aqueles que optassem pelo retorno e mais os novos que seriam engajados. Infelizmente, essa volta não aconteceu até hoje.
Bem, a breve vida do espetáculo ocorreu em 2007. A proposta era contar simultaneamente, através de uma “comédia dramática”, duas histórias, que na verdade eram uma só, sem que a plateia se desse conta disso de imediato. O desenrolar da trama, com o palco dividido ao meio, iria se desvendando aos poucos – cada um entenderia a relação no seu tempo.
Muita gente só percebia nas cenas finais, e esses é que se aproximavam mais do resultado esperado da proposta. Nos aplausos e agradecimentos, era preciso pedir às pessoas que não revelassem a surpresa. Hoje, pediríamos que não dessem spoiler, termo que ainda nem existia. Aliás, muita coisa não existia, principalmente na “história um”, passada nos anos 1980.
Paradoxalmente, as relações homossexuais eram totalmente marginalizadas, mas extremamente livres no período pré-Aids. Aplicativos de encontros não estavam nem em projeto, pois não havia celular. Porém, o embrião estava ali, nos serviços de linhas cruzadas em telefones fixos que promoviam encontros. E é justamente um desses serviços, o popular 145, que, através de uma traição, acaba criando o “trisal”, responsável pela ligação com a “história dois”, já nos tempos atuais, anos 2000.
Vamos com mais spoiler? Acho melhor não, ainda existem planos para a volta do espetáculo. Acredito na boa recepção do público, talvez até melhor que na estreia, pois temas referentes à diversidade sexual estão cada vez mais em pauta e as redes sociais, que na época engatinhavam, agora estão aí para ampliar as vozes.
“Nessa cidade todos têm felicidade” merece nova chance e, quem sabe, sucesso que justifique novas longas temporadas.
• ÀS SEXTAS-FEIRAS, A COLUNA HIT PUBLICA A SEÇÃO “TERCEIRO SINAL”, NA QUAL DIRETORES, ATORES E PRODUTORES ESCREVEM SOBRE PEÇAS QUE FIZERAM SUCESSO ENTRE OS ANOS 1960 E 1990 E COMO SERIA A REAÇÃO DO PÚBLICO SE ELAS FOSSEM REMONTADAS.