Helvécio Carlos/Ângela Faria
Obra da brasileira Cândida Borges está entre as quatro contempladas, entre 1,5 mil trabalhos de todo o mundo, com o prestigiado Prêmio Lumen, voltado para arte e tecnologia. Em parceria com o colombiano Gabriel Mario Vélez, ela criou “Transeuntis mundi derive 01”.
Artista transmídia e musicista, Cândida nasceu em Niterói, é professora associada da Unirio (RJ), pesquisadora visitante da Universidade de Antioquia, na Colômbia, e doutoranda pelo Interdisciplinary Center for Computer Music Research da Plymouth University, no Reino Unido.
“O prêmio é a confirmação de rota, uma injeção de ânimo, além de abrir portas importantes no cenário da arte internacional. Representar o Brasil é responsabilidade imensa. Há poucos artistas brasileiros nessa cena. Ganhar este espaço é muito poderoso e importante para todos nós”, ela afirma.
A obra pode ser visitada no site www.transeuntismundi.com até o final de outubro. A agenda da exposição está disponível no Facebook e no Instagram do projeto.
Como foi criada a obra contemplada este ano com o Prêmio Lumen?
“Transeuntis mundi” foi criada como a obra principal do meu doutorado em composição musical pela Plymouth University, na Inglaterra. Só que em realidade virtual! Apliquei o conceito de arte transmídia para criar entre a música, o cinema, a performance e a fotografia. Pesquisei sobre a migração milenar do Homo sapiens – das primeiras teorias de surgimento na África, passando por suas caminhadas por todo o planeta até povoar os mais longínquos territórios. Parti da análise do meu DNA, que dizia que carrego todas as etnias humanas. Fui estudar a caminhada de meus ancestrais, aí viajei na ideia do primeiro ancestral comum e como essa história milenar se reflete na nossa vida hoje.
O público já conhece “Transeuntis mundi derive 01”, não é?
O lançamento ocorreu em 2019, em Medellín, na Colômbia. Já na estreia, foram quase 2,5 mil visitantes em nove dias da Festa do Livro e da Cultura. De lá pra cá, foram muitos convites e participações em mais de 18 eventos na China, Grécia, Irlanda, Portugal, Inglaterra, Estados Unidos e Argentina. Na pandemia, desenvolvemos exposição on-line da obra e continuamos trabalhando. Agora retomamos as exposições presenciais com aparelhos de realidade virtual. Calculamos que pelo menos 5 mil pessoas já experienciaram “Transeuntis”.
Como tem sido a reação das pessoas?
A experiência da arte contemporânea é uma surpresa a todo instante. A novidade da realidade virtual seduz muito as pessoas, a narrativa da obra é polêmica. Não tem animação – é metaverso baseado no realismo. Uma janela da realidade. Uma das minhas grandes alegrias é ver que a obra tomou rumos em direção à educação, à formação de novos artistas e também nas escolas. É maravilhoso ver a obra de arte abrindo discussões sobre biologia, geografia, política, antropologia, filosofia, tanto para crianças como em universidades, em conferências de sociologia, computação, composição musical ou de política. Fico surpresa com o potencial que a obra tem de conectar tantos públicos e cenários diferentes!
Você estudou em Nova York, Londres e na Colômbia. Essas migrações influenciaram o trabalho?
A obra “Transeuntis mundi” é migração virtual, construída em cima de uma metodologia nômade de criação artística. A ordem é provocar reflexão sobre o tema. É muito necessário convocar o direito de nos movermos, especialmente depois de passar dois anos de tanta limitação nesse sentido. O direito político de migrar, a tolerância social em relação a migrantes e imigrantes, a observação da riqueza de experiências e culturas que migrar nos proporciona. Mais ainda, contemplar o direito das pessoas de buscar uma nova vida, expandir suas experiências. E também de buscar proteção e asilo, como imigrantes de regiões de conflito. A inspiração veio da nossa própria experiência como artistas em trânsito pelo mundo.
Seu trabalho é parceria com Gabriel Mario Vélez. Como se deu esse diálogo?
Gabriel é artista e escritor colombiano bastante conhecido nos meios da arte latino-americana. Ele havia criado, em 2006, “Transeuntes Medellín”. Aí o convidei para ser codiretor da minha pesquisa de doutorado e decidimos unir os projetos artísticos. Hoje, os dois coexistem no mesmo grupo de pesquisa e circulam juntos pelo mundo. Nossa equipe de trabalho é formada por brasileiros e colombianos. Na Colômbia, somos um grupo de pesquisa da Universidad de Antioquia, uma das principais do país e do mundo, que financiou grande parte desse trabalho. A Colômbia é um país incrível, que investe muito em arte.
Qual é o papel da arte transmídia no contexto das artes contemporâneas?
A arte transmídia reflete a revolução que a tecnologia proporcionou em todos os campos. Na conceituação dessa obra, nos referimos à arte em movimento, que funde os diferentes meios – a música, a fotografia, o cinema, a narrativa, a poesia, a performance – pelo viés das tecnologias para realidades expandidas. A imersão e a interatividade são elementos dessa criação, que não é um game, também não é um filme ou documentário. É uma experiência em metaverso, performativa e poética. De muitos simbolismos e significados. Muitos idiomas, sonoridades, gestos, movimentos, geografias, cores. Disponível para o visitante cocriar a trajetória, a duração, o foco da narrativa, o som. Nossa proposta foi trazer a realidade virtual para uma criação de arte contemporânea herdeira da antropofagia de (Oswald de) Andrade, da performância de (Helio) Oiticica e (Joseph) Beuys, da irreverência de (Andy) Warhol e tantos outros criadores que expandiram o pensamento da arte no último século.