Jornal Estado de Minas

COLUNA HIT

Mineiro conta como é ser o 'ponto' de Vera Holtz no espetáculo 'Ficções'


Tudo em “Ficções”, espetáculo em cartaz no CCBB, na Praça da Liberdade, emociona e chama a atenção. Da interpretação de Vera Holtz à interação da equipe em cena, nada escapa ao olhar do público que vem lotando o teatro desde a estreia, no início deste mês. Ganha espaço o “ponto”, presença certa no teatro do passado, uma espécie de segurança para que o artista não perca nada do texto. 





Na turnê em Belo Horizonte, o mineiro João Santos tem a missão de ser o “ponto” de Vera. Ele acompanha tudo o que a atriz fala em cena. Em pouco mais de hora e meia, João lê as 35 páginas do roteiro.

Graduado em comunicação social pela UFMG e mestrando em artes da cena na mesma universidade,  João Santos começou sua trajetória no teatro trabalhando na comunicação de grupos e produtoras culturais da capital mineira. Autor do livro “Teuda Bara: Comunista demais para ser chacrete”, recebeu da atriz do Galpão o incentivo para iniciar o trabalho como dramaturgo e diretor, atividades às quais hoje se dedica prioritariamente.

A cada sessão, o "ponto" lê as 35 páginas da peça (foto: Helvécio Carlos/EM/DA Press)


Como surgiu o convite para ser o “ponto” de Vera Holtz?
A produtora local do espetáculo, Juliana Peixoto, que foi minha colega quando trabalhei na Rubim Produções, me pediu, sem segundas intenções, indicações de pessoas que pudessem ser o “ponto” da Vera na temporada do “Ficções” aqui em BH. Por coincidência, eu estava acompanhando uma oficina da cantora Cida Moreira com o Grupo Galpão. O cenógrafo Márcio Medina também estava na oficina e comentou conosco sobre o “Ficções”, completamente deslumbrado com o trabalho da Vera. Também elogiou muito a opção de assumir tudo em cena: o músico, os cenotécnicos, a camareira e até mesmo o “ponto”, essa figura resgatada do teatro de outros tempos. Disse pra Ju que não ia indicar ninguém: se pudesse, adoraria ser, eu mesmo, este “ponto” aqui em BH.





Foi a sua primeira experiência na função?
Tenho feito assistência de direção em alguns trabalhos teatrais. E até mesmo me arriscado na direção de outros. Ponto, nunca tinha sido antes, mas sei bem o que é bater texto com um ator. Engraçado que uma das minhas primeiras experiências como diretor foi o espetáculo “Luta” (2019), solo de Teuda Bara, a pessoa a quem devo tudo no teatro. Neste trabalho, eu e os outros diretores, Cléo Magalhães e Marina Viana, acabamos entrando também em cena, “dirigindo” Teuda ao vivo. Não é igual, mas tem semelhanças com o “ponto” que faço agora.

Como se deu a sua preparação para o posto? 
O primeiro passo foi me reunir com a Alessandra Reis e o Wesley Cardozo, produtores do “Ficções”. Me explicaram que o “ponto” era a figura que estaria o tempo inteiro em cena no espetáculo, mas eles não estavam procurando um ator. Ainda que notada pela plateia, a presença do “ponto” é discreta. Achei que me encaixava bem no que eles buscavam, porque não sou nem tenho pretensões de ser ator. Mas já fiz de tudo no teatro, inclusive estar sobre o palco, vez por outra. Já não é um lugar estranho para mim. Depois dessa reunião, os produtores compartilharam comigo uma filmagem e o texto do espetáculo, que estudei até o nosso encontro em BH.

Como foi o seu encontro com Vera Holtz?
Vera chegou um dia antes da estreia da temporada, no dia reservado para a montagem técnica. Me chamou para o camarim dela e fomos passando juntos o texto inteiro. Ela foi indicando mudanças que haviam feito e, por vezes, pegava minha caneta para anotar alguma alteração. A grande dica que ela me deu foi ficar atento, mas tranquilo. Se precisasse de mim em cena, ela ia pedir. E nas raríssimas vezes que precisou, foi assim mesmo.





Vera Holtz e Teuda Bara foram homenageadas no Prêmio Shell, não é?
Uma coincidência foi ter feito aquela primeira reunião, on-line, com os produtores da peça no dia em que eu estava no Rio de Janeiro, para onde peguei o busão para assistir à homenagem que o Prêmio Shell fez para Teuda. E a Vera, que recebeu o prêmio de melhor atriz pelo “Ficções”, encerrou a noite puxando em coro a oração que faz com a equipe todas as noites: “Eu seguro a minha mão na sua, uno meu coração ao seu, para que juntos possamos fazer aquilo que eu não posso, aquilo que eu não quero, aquilo que eu não vou fazer sozinho: arte, teatro, e muita merda!”

Você precisou “contracenar” com Vera? Como você a define como atriz?
Tenho brincado com a Vera e com a equipe dizendo que este “ponto”aqui  é quase cenografia, porque ela tem domínio do texto! Quando digo que ela tem domínio, não significa que não possa se confundir, o que ocorre muito raramente. O que ela faz é muito mais difícil do que meramente decorar: ela se tornou dona do que está sendo dito. Compreende, atravessa, traz para o corpo e a voz dela. Quem já viu a peça talvez tenha se perguntado: o que é que a Vera interpreta ali? Ela pode ser um fóssil, ela pode ser Deus, ela pode ser a mulher de azul na segunda fileira. E ela pode ser a Vera Holtz. Para mim, o mais incrível do trabalho desta grande atriz é vê-la criando e descriando ficções, sem deixar de ser quem é. Quando ela é fóssil, Deus ou a mulher da segunda fileira, ela é tudo isso de Vera.

Como é a sua rotina, a cada noite?
Assisto a quase todo o espetáculo meio de canto de olho, pois devo ficar atento ao texto. Mas há o momento em que sempre olho pra ela: a hora em que Vera toca o berrante. Às vezes o público ri, às vezes fica em silêncio. Eu me arrepio do dedinho do pé à cabeça. Acho de uma sofisticação tão grande aquele erre marcado, quando ela fala da “morte da bezerra”. Tão linda e autêntica aquela dicção. Metade DNA, metade escolha da atriz. Quando essas coisas se encontram, se confundem e se completam? Uma atriz buscando a verdade inventada no palco. É lindo ser tão ela mesma, sendo também – e tão bem – tantas outras. Será que Vera precisa mesmo do “ponto”? Aquela vez em que ela me pediu o texto, será que era cena?