Para a geração que passou dos 50 anos, Vera Verão, personagem de Jorge Lafond, é velha conhecida. Todas as semanas, por muitos anos, ela entrou nos lares por meio do humorístico “A praça é nossa”, exibido pelo SBT/Alterosa. Mas a vida do ator não se resumiu ao estrelato na telinha. Pelo menos é o que mostra a peça “Jorge pra sempre verão”, em cartaz até 31 de julho, às 20h30, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), na Praça da Liberdade.
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Jorge Lafond morreu novo, aos 50 anos, devido a problemas cardíacos, em 2003. Para muita gente, ele é a bicha engraçada do programa humorístico. Mas quem realmente foi Lafond? O que ele representa para o movimento LGBTQIAP+?
Rodrigo França - Jorge Lafond foi um dos maiores intelectuais deste país. Era uma pessoa da academia, formada em educação física, formada em dança. Foi da companhia de Mercedes Baptista, primeira bailarina negra do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Fora esse artista extraordinário, era um intelectual que sabia o que estava fazendo. Sabia utilizar sua arte como estratégia para se manter, inclusive em espaços contraditórios à sua luta, à sua arte. E, como resultado, tem o Jorge Lafond que a gente admira hoje.
A peça é ficcional. Mas muita coisa parece real, como o momento em que ele viu o parceiro de mãos dadas com a mulher evangélica, a surra que levou do padre. O que há de verdade e de ficção no palco?
Rodrigo França - Sempre será ficção, né? O interessante dessa obra é que ao mesmo tempo em que você tem uma relação muito documental, ela é muito ficcional. Estraga muito do trabalho artístico definir o que é verdade e o que é mentira. Na verdade, tudo é crível, porque o Jorge representa muitas bichas pretas, muitas travestis pretas que estão aí, né?. Então, tudo é verdade, a partir desse ponto do Jorge Vera Verão como espelho de parte da sociedade que até hoje é marginalizada e sofre.
Um padre forçou a retirada dele do palco de um programa de televisão, essa história é bem conhecida. Em algum momento ele se desculpou com o Lafond?
Rodrigo França - Eu, como artista, como intelectual que sou, prefiro levar para o campo das ideias. Não foi o padre, são os padres, são os pastores, são as pessoas que representam esse indivíduo que foi violento com Jorge. Foi por preconceito, por ódio. Por ódio mesmo. E tá aí até hoje, né? A gente pode dizer que o ódio, a intolerância mataram o Jorge Lafond, representado aqui por uma única pessoa que tem desdobramentos, por uma sociedade que ainda é hipócrita, que ainda é colonial, que ainda é violenta.
A relação com a prima, que por preconceito ficou anos afastada dele, é o fio condutor da história. A peça é o pedido de perdão dela?
Rodrigo França - Essa prima é a gente da sociedade que, de certa forma, deixa de conhecer pessoas interessantes, deixa de ter pessoas tão excepcionais vivas por conta do ódio. O quanto mazelas como LGBTQIAP fobia, como machismo e racismo fazem com que pessoas que poderiam contribuir tão fortemente para a sociedade estejam marginalizadas ou até mesmo mortas? Isso faz com que a sociedade, cada vez mais, esteja longe da sua humanidade. É impossível você ter a visão de humanidade ao ver alguém ou um grupo em que a juventude morre a cada 23 minutos, é assassinada a cada 23 minutos, como ocorre com a juventude negra deste país. Como posso falar que existe humanidade no Brasil, com grande parte da população fechando os olhos para isso?
Como era a sua relação com Lafond?
Rodrigo França - Comecei a fazer teatro em 1992. Eu era um jovem de 14 anos, tive a sorte de o teatro onde comecei ter Jorge Lafond. Eu o vi brilhar, na coxia. Sempre foi uma grande referência para mim, como excepcional artista e profissional que era, de chegar com seu texto decorado, cumprir a pontualidade, ser alguém muito respeitoso. É sempre muito importante frisar que se até hoje se perpetua a violência nas relações profissionais, ela era uma pessoa muito respeitosa com seus colegas. Então, pra mim, é um exemplo daquilo que eu sou e daquilo que quero ser.
O destino foi cruel com Lafond, que morreu há 20 anos. Se estivesse vivo, qual seria a importância dele para o movimento LGBTQIAP ?
Quando a gente fala sobre ancestralidade negra, a gente não coloca no passado, a gente coloca no presente. O Jorge é uma das figuras mais importantes do movimento negro. Ele é uma das figuras mais importantes do universo LGBTQIAP . Não dá para discutir carnaval sem falar sobre Jorge Lafond. É inadmissível falar sobre artes cênicas, sobre dança, sobre arte performática sem falar dele. Jorge Lafond ainda está vivo. É delicioso ver (na peça) uma plateia mista que mistura gerações, principalmente jovens que não estavam aqui presentes no auge do Jorge Lafond. Os jovens de 16, 20 anos vêm contemplar o espetáculo porque a internet fez com que a exuberância de Jorge Lafond chegasse até esta geração.