Imagine acordar em um consultório médico com uma lipoaspiração nas axilas que você não autorizou? Imagina se essa cirurgia se tornar irreversível?
Diferente das maçãs envenenadas dadas por bruxas más dos contos de fadas que líamos na infância, estimulando a rivalidade feminina, as histórias de horror estão logo ali, do nosso lado, praticadas pelo príncipe encantado - quase sempre.
Foi isso que aconteceu com a apresentadora e ativista Luísa Mell, conforme noticiado, na última semana, quando a apresentadora e ativista noticiou a separação do marido e relatou que acordou depois de uma anestesia para um procedimento simples com uma cicatriz irreversível em razão de uma lipoaspiração que o médico dela fez mediante autorização do marido.
A informação é que ele teria decidido, por conta própria, que ela necessitaria da cirurgia e, como ela estava anestesiada, endereçou o pedido ao marido, que prontamente autorizou.
A questão é tão problemática quanto parece. Luísa Mell teve seu corpo violado sem consentimento. Ela foi submetida a um procedimento cirúrgico invasivo e sem possibilidade de reversão. E o mais absurdo é: nada aconteceu. Nem com o marido - que agora é ex, nem com o médico.
Os danos físicos são irreparáveis, mas e os psíquicos? E por que não estamos falando sobre isso? E por que não estamos incendiando nossos próprios corpos enquanto isso ocorre?
E por que as blogueiras body positive não estão falando sobre o tema com a mesma fúria que dizem por aí que pessoas gordas são doentes?
Na minha primeira coluna aqui, falei sobre como estão sumindo com os nossos corpos e somos cúmplices disso. E somos. Enquanto naturalizamos que Luísa Mell pode ser violada por seu cirurgião sem ter manifestado qualquer desejo de passar por um procedimento do tipo, estamos sendo cúmplices do sumiço dos corpos - das mulheres e fora dos padrões.
Por aqui, amo ler ficção e terror escrita por mulheres e nem a mais distópica delas dá conta de tamanho horror. Inclusive, ontem, a escritora Dia Nobre fez um tuíte que resume isso “toda mulher tem uma história de horror para contar”.
Se filtrarmos tudo que ocorreu com a apresentadora Luísa Mell, o que nos sobra é o mais absoluto horror da violação aos nossos corpos. A pergunta que fica é: o que fazer a partir daqui?
No caso da Luísa Mell, a ativista disse que não sabe se vai entrar na justiça e disse estar sem forças para isso no momento. Não é para menos, né?
Esse horror não para. Sequer as estatísticas dão conta disso. Por dia, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, 181 mulheres são violentadas no Brasil. Enquanto você lê essa coluna, ao menos uma mulher é violentada.
Entretanto, o que fazemos enquanto nos falta forças? Como cicatrizar o incurável? Além das marcas que o cirurgião deixou nas axilas e no pescoço de Luísa Mell, como apagar a lembrança de tamanha violação?
Como enquadrar o horror de um crime que é não só tocar no corpo de alguém sem consentimento, mas violá-lo de forma física e moral. Qual a penalização para isso? E porque não estamos, como na distopia de Mariana Enriquez, “As coisas que perdemos no fogo”, ateando fogo em nós mesmas e nos padrões que, quando não nos matam, somem um pouco com nossos corpos, nossos tamanhos, nossas subjetividades?
Queria entregar, neste texto, algo mais vibrante e positivo, mas, por hoje, não consigo. Só consigo lamentar que não estejamos enlouquecidos com tamanha violência e/ou que naturalizamos.