Jornal Estado de Minas

LIBERTAÇÃO DOS CORPOS

E se um estudo provar que obesidade não é doença?


 
Imagina que você acordou hoje e a ciência comprovou, através de inúmeras pesquisas médicas, que corpos gordos não são, necessariamente, doentes? Já pensou como seria habitar um mundo em que pessoas gordas não são animalizadas por causa de seus corpos e que, através de dados e de muito estudo, comprova-se que a ideia de obesidade - palavra para designar doenças em corpos gordos - foi constituída a partir de um paradigma científico patriarcal e mercadológico. 





Consegue pensar num mundo desta forma? Pois foi isso que, na última semana, a Science Mag tentou, ao publicar o artigo “A obesidade nem sempre significa problemas de saúde. Aqui está o que os cientistas estão aprendendo
 
 
O mesmo contrapõe o que há algum tempo, o ‘Fat Studies’, ou no Brasil os “Estudos do Corpo Gordo” fazem, ao combater a ideia de que nem todo corpo gordo é doente e nem pode ser considerado assim, já que, de acordo com os mesmos estudos, a quantidade de quilos que algum corpo tem, combinado a sua altura  - que é o que designa o Índice de Massa Corporal (IMC) - não pode ser usado como único definidor para o caso de a pessoa ter um pressão arterial saudável, não ter diabetes, não ter asma, entre outras coisas consideradas comorbidades. 

Conforme o novo artigo, um corpo gordo nem sempre está acompanhado de problemas de saúde. O pesquisador de diabetes tipo 2, Philipp Scherer fez um estudo com camundongos e de forma simplista - mas que pode ser lida com detalhes aqui - concluiu que embora gordos, muitos dos animais seguiam saudáveis e conseguiu apresentar dados de que desmontam a tese que muitos pesquisadores e médicos - e sociedades mais amplas - consideram como um dado adquirido: de que corpos gordos automaticamente teriam problemas de saúde. 

Scherer não é o único. Ruht Loos estuda genética da obesidade na Universidade de Copenhagen e afirma: “Podemos ser obesos, mas permancer saudáveis”. E, não apenas ambos, mas outros pesquisadores ao redor do mundo compõe um time que está examinando genes, modelos animais e humanos e entendendo que fatores como a própria natureza e a distribuição da gordura no corpo podem atenuar quaisquer impactos do peso na saúde. Eles também trabalham para definir o que é chamada de obesidade metabolicamente saudável (MHO) e examinar o quão comum ela é. 





Para o pesquisador fisiologista  e defensor da positividade corporal, o professor da Universidade da Califórnia, Lindo Bacon - sim, podemos nos divertir com o paradoxo que é este nome ao se falar de gordura e corpos - muitas pessoas classificadas como obesas a partir do IMC não tem sinal de doença e vivem uma vida longa e saudável. 

Bacon insiste que a gordura em si não é um marcador importante nas doenças. Para ele, os determinantes sociais da saúde, como pobreza, discriminação e acesso a alimentos saudáveis, teriam muito mais impacto. E, de fato, alguns estudos mostraram que pessoas com obesidade que não têm disfunção metabólica geralmente têm mais acesso à educação e são mais abastadas  do que aquelas com problemas de saúde associados à gordura no corpo.

E não paramos por aqui, o mesmo estudo mostra que pessoas gordas podem ter níveis saudáveis de colesterol e glicose no sangue, enquanto muitas pessoas magras não têm. 

“Você vai a uma clínica de obesidade, as pessoas pesam 120 kg, 140 kg. Alguns têm problemas e outros não ”, diz Antonio Vidal-Puig, que estuda e trata doenças metabólicas em Cambridge. 




 
 

Apologia à obesidade?!


Antes que surjam comentários dizendo que estamos fazendo apologia à obesidade e/ou romantizando a gordura corporal, vamos esclarecer neste artigo, através das palavras dos próprios pesquisadores, que este não é - e nunca foi, vale lembrar  - o objetivo. Ninguém aqui estimula hábitos de vida pouco saudáveis ou a ingestão desenfreada de alimentos com baixo valor nutricional e ultraprocessados. 

O que queremos dizer é: devemos ser tratados como seres humanos nos corpos que habitamos, que podem ser, inclusive, gordos. E, sermos gordos não significa estarmos doentes, no entanto, o tratamento desumanizado pode nos adoecer mais do que a quantidade de tecido adiposo no abdômen. A gordofobia mata mais do que os quilos na balança. 
 
“Não é o quão gordo você é, é o que você faz com isso que conta”,  Vidal-Puig intitulou um artigo que ele co-escreveu em 2008. Ao mesmo tempo, Vidal-Puig expressa um dilema que ele e seus colegas enfrentam: ele está relutante usar o termo MHO, com o qual ele se preocupa pode induzir as pessoas a pensar: “tudo bem ser obeso”.





'Não estamos dizendo isso', diz ele. Em vez disso, algumas pessoas 'são saudáveis %u200B%u200Bporque são resistentes à obesidade'. Vidal-Puig quer se ater à ciência dessa resiliência, explorando como a obesidade pode coexistir com medidas de saúde. Estamos explicando como funciona.
 
 
 
Dito isso, a ciência, a partir desta pesquisa, reforça o que atletas plus size - e ativistas anti gordofobia, como eu, há muito declaramos: ser gordo não significa necessariamente não ser saudável.
 
“Existem pessoas”, como mostram os dados de Loos, “que são geneticamente predispostas à obesidade têm baixo risco cardíaco, e isso é muito interessante”, diz Cynthia Bulik, psicóloga clínica e especialista em transtornos alimentares da Universidade da Carolina do Norte, Chapel Hill e o Instituto Karolinska. “Eles podem ser capazes de sobreviver em um corpo maior” sem efeitos metabólicos nocivos.




Provas científicas 

As evidências científicas que comprovam a máxima são várias, mas, eu sei que muita gente - pode até ser você - vai ler este texto e me acusar de ser negacionista, de rejeitar a ciência, de ir contra a Organização Mundial da Saúde (OMS). Há quem vá, inclusive, me comparar a grupos que defendem políticas anti vacinas e bradam contra a pesquisa e a ciência. O que, claro, é um disparate, já que todo texto é embasado em evidências médicas, em artigos publicados e revisados. Em pesquisadores sérios que há muito dedicam-se em entender os corpos gordos e não só - em humanizá-los. E esta é uma tecla muito batida por esta que vos escreve e nesta coluna. A repetição se faz urgente e eu me pego pensando: o que mais precisamos fazer?

Já trouxemos evidências antropológicas, psicológicas, médicas e científicas? Por que, então, nossos corpos gordos amedrontam e aterrorizam tanto que não podemos, sequer, existir?
 
 
 
Mas, já que estamos falando de pesquisas, em março de 2020, a Nature Medicine publicou um estudo em que aponta que a comunidade médica precisa urgentemente rever a ideia de patologização dos corpos gordos. Veja bem. Não sou eu, uma mera jornalista que está dizendo isso. É um grupo de estudiosos e pesquisadores da área médica. 

Este mesmo estudo dá conta de que o atendimento negligente, moralista e opressor com os corpos gordos podem trazer consequências mais graves do que o peso combinado à altura. Entre os sintomas desenvolvidos estão ansiedade, estresse, agravamento de transtornos, como os alimentares e ainda podem levar ao suicídio. 

A pesquisa dá conta de que estas doenças, diretamente ligadas à opressão dos corpos gordos são mais prejudiciais do que o colesterol alto, por exemplo. 

Para encerrar, a pesquisa “Obesidade em adultos: uma diretriz de prática clínica”, assinada por mais de 100 profissionais da área da saúde do Canadá e publicada na Revista CMJA Open pede que seja feita a revisão imediata do CID da obesidade e sugere sua exclusão. 





O CID seria a Classificação Internacional de Doenças, que no caso dos corpos gordos, os patologia desde 2013, ou seja, há menos de uma década, um corpo gordo não era necessariamente doente. Ora, ora. 

Assim como, há pouco tempo, práticas eugenistas como o IMC eram validadas pela ciência e pela medicina para medir o crânio de pessoas negras e legalizar todos os tipos de violências contra estes corpos. O mesmo com pessoas transexuais que até dois anos eram lidas pela psicologia como psicóticas e, em muitas clínicas, lidas como alucinadas e não dignas de serem chamadas por seus nomes sociais. 

Fato é que o CID de doença aos corpos gordos se transformou em mais uma ferramenta de opressão -  e inclusive de sofisticação do discurso, como já falamos aqui. A patologização é uma tecnologia científica usada para massacrar, perseguir, invisibilizar e provocar o genocídio silencioso destes corpos. Eu falei sobre isso na primeira coluna. 

Se nada disso faz com que você perceba o tamanho da violência cometida e institucionalizada contra corpos dissidentes, eu não sei o que fará. Estamos sumindo e, ao mesmo tempo, somos cúmplices dessa prática. 

E se você acreditar nos estudos que eu trouxe como provas, como fará para oprimir quem é diferente e trabalhar sua política de distinção a partir dos corpos? 








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