Jornal Estado de Minas

CORPOS DISSIDENTES

Estridente demais para ser a mulher que sai pela porta dos fundos


 
Fugindo dos estereótipos da boa mulher, virtuosa, eu nunca fui silenciosa, discreta, misteriosa. Desde criança, sou espalhafatosa, escandalosa, falo alto, derrubo coisas, não sei chegar em um ambiente e passar despercebida. Entro numa sala e já derrubo alguma coisa. Assusto com o manequim das lojas. Quase sou atropelada na rua. Estou acostumada com todos os olhares em mim





Não consigo esquecer de uma vez, há quase 15 anos, numa coletiva de imprensa no gabinete do prefeito em que eu entrei, derrubei um mapa que estava pendurado num tripé. Pra acalmar, fui beber uma água e virei a jarra sobre a mesa de vidro. Perguntas feitas, respostas dadas, fui sair e tropecei na escada. Fiquei de gatinho, agachada, de quatro, no corredor da prefeitura, com todo mundo olhando quem tinha sido a pessoa com mais de 100 kg que tinha estremecido o piso de madeira do prédio. 

Essa sou eu e ser discreta não é algo que combina comigo. Não sou o tipo que chega bem arrumada, perfumada e silenciosa. Sou estridente. E, como pode a uma mulher estridente ser pedido que deixe uma casa após uma transa pela porta dos fundos?

A lembrança da cena não é gratuita. Na última semana, assistindo - maratonando, verdade seja dita - a série “Shrill” (Estridente, na tradução livre), que tem se popularizado no Brasil ao integrar o catálogo da recém-reformulada HBO MAX, uma das cenas reativou vários traumas em mim: ser a mulher gorda que é convidada para transar mas deve deixar o recinto pelos cômodos dos fundos, sem ser vista, sem fazer barulho, sem incomodar, sem expor a vida de quem está na outra ponta. 

Contém spoiler a partir daqui: na série, a personagem Annie Easton, interpretada por Aidy Bryant é uma jornalista às voltas com o próprio trabalho, sonhando em ter uma coluna de sucesso (até aqui, só dependo de vocês, vai! Me deem essa moral) onde possa falar dos temas que lhe atravessam, lidando com problemas familiares de uma filha única e as rejeições amorosas, além das abordagens indecorosas de pessoas fitness nos cafés em que frequenta, nas ruas, etc. 





Entre estes acontecimentos, está Ryan (Luka Jones) o principal relacionamento de Annie e que a convida para transar, mas não dispõe de um travesseiro pro caso dela querer passar a noite e pede que ela saia pela porta dos fundos, pelo quintal, pulando um muro bairro, se esgueirando para fora da casa como uma criminosa. O motivo? Ele não quer que seus amigos de casa a vejam. O medo é ser visto como o namorado da mulher gorda. 

Annie topa a condição na crença de que ele é o melhor que ela conseguirá em termos românticos e sexuais. Aceita a migalha que foi condicionada a acreditar que merece - da comida, sempre em dieta restrita, aos relacionamentos afetivos, sempre minguados. E Annie não está sozinha nessa. Eu poderia muito bem lhe fazer companhia. Não só no desejo de escrever sobre o que me atravessa e ser lida, mas ao me permitir sair pelas portas dos fundos, saídas discretas, “vai na frente que eu vou depois”, entre outros comportamentos após encontros, dates e/ou saídas com pessoas, sobretudo homens, que não desejavam serem vistos acompanhados de uma mulher gorda. 
 
 
Poderia citar alguns exemplos e sei que você, mulher gorda, que está me lendo na outra ponta, vai se identificar. O cara que parou o carro quadras longe de onde deveria me deixar com medo de ser visto comigo, o boy que só podia se encontrar de madrugada e, durante a semana, em lugares pouco confortáveis, o cara que me pedia para ir na frente, que ele iria depois. E quanto mais listo, mais a memória aciona lembranças nada agradáveis de tentativas de afeto que se tornaram pura objetificação do meu corpo e anulação da minha subjetividade. Tal qual a Annie da série Shrill. 




 
(foto: Shrill/HBO Max/Divulgação)
 
 
Aqui cabe um paradoxo, que é: como podem corpos tão grandes se tornarem, tão rapidamente, invisíveis? 

Como Annie, eu me desdobrei, por muito tempo, tentando agradar esses caras que me ofereciam apenas o prazer deles e a repulsa/rejeição por mim, ao mesmo tempo em que me desejavam, mas em segredo. Isso me faz concordar com a jornalista Lauren Strapagiel, do Buzzfeed no Canadá, quando ela diz: “As mulheres gordas merecem coisa melhor do que esses péssimos interesses amorosos das séries”. 

Sim, nós merecemos mais. Mas existe um longo caminho entre o que nos é ensinando desde a  infância - e já falamos disso aqui, em colunas anteriores - mas que passam pelo entranhamento da gordofobia e aversão aos corpos gordos às pressões cotidianas por sermos dóceis, caladas, obedientes, perfumadas, magras, brancas, silenciosas, misteriosas, sobrando um gigantesco luminoso que questiona: como pode um corpo tão desobediente, com alguém tão estridente, se julgar merecedor de afeto ou algo mais que a rejeição, o desprezo e a abjetificação? 

Lauren não para por aí, mas nos faz refletir não só sobre a Shrill, mas outras séries, que embora tragam representação, esta é quase sempre trágica, vitimista, sofrida ou mal amada. “As poucas histórias que vemos sobre mulheres gordas ainda são limitadas a suas vidas amorosas — que ainda costumam ser deprimentes e medíocres”

Penso e hoje entendo que é difícil dissociar a vida de uma mulher gorda do que ela experiencia dos atravessamentos provocados por habitar um corpo dissidente, mas transformar isso na única pauta existente inclusive no entretenimento é exaustivo demais, porque a realidade já é angustiante  e nossa única representação for uma mulher que tenta se ajustar à vida adulta mas se conforma com um cara que a pede para sair pelas portas dos fundos, não avançamos muita coisa, embora seja uma vitória termos uma série protagonizada por uma mulher gorda para discutirmos. 
 
 
Tudo que chegamos à vida adulta sabendo é que ter um corpo gordo é ruim e indesejável, portanto, internalizamos o que nos dizem o tempo todo: ‘somos ruins e indesejáveis”. Romper com este ciclo requer muito. Eu não saberia, de pronto, dizer o que seria necessário, embora essa pergunta me seja feita com frequência e eu use esta coluna como uma extensão do divã para organizar os pensamentos acerca da compreensão do que é habitar este corpo imenso, que ora é extremamente desejável e ora é extremamente indigesto. 





No meio disso, temos que sobreviver, tal qual a Annie da série. Enfrentar o cotidiano no trabalho, as piadas a seu respeito, os olhares maldosos, a mãe que só fala com ela se for para mencionar dietas e amigos às voltas com seus próprios romances e dilemas. Ser criativa nesse caos é um trabalho difícil - não mais do que no Brasil de 2021, que seja dito -, que exige a busca por um acolhimento, que vem em forma, mais uma vez de rejeição. 

Quando Annie busca em Ryan qualquer tipo de acolhimento, recebe como resposta emoticons vazios, o que a leva, por conta própria, a tomar novas decisões, que a colocam no centro da própria vida, com tenacidade, confiança e rumo aos próprios sonhos. Enquanto Ryan se esforça para escondê-la dos roomates, manter o próprio emprego e recebe a mãe para lavar a roupa dele, a louça e ainda emprestar o carro. 

Mas, por mais que Annie consiga transformar a própria realidade, o que inclui uma ida a uma pool party só para mulheres gordas, em que, finalmente, ela se sente pertencente a algo - e pra mim essa foi também uma das experiências mais revolucionárias da vida: estar num ambiente em que todos os corpos eram gordos, parecidos com o meu, onde não haveria julgamento, é potente, iluminador e transformador - não consegue se desvencilhar de Ryane, que mal sai do lugar. 





Após uma briga e um término, ele oficializa o relacionamento com Annie, mas segue sendo medíocre, como sempre foi e não consegue acompanhar a mulher incrível que ela está se tornando. E, por mais que a série acerte, inclusive no guarda-roupas da protagonista, em alguns momentos como a festa na piscina ou ao lado da melhor amiga ou ainda expondo as amigas magras como a que Annie teve na universidade e que toda mulher gorda já teve: a que é esquelética, mas para na frente do espelho e diz que vai parar de comer porque não quer virar uma gorda. Em outras palavras: “eu me cuido e tenho medo de me tornar algo como você”. Ainda sim, a série derrapa nos clichês e hipóteses heterossexuais, que nos mantém presas na mesma narrativa, há muito tempo, com uma vida afetiva limitada, deprimente e medíocre. 

No entanto, é importante reconhecer que Shrill traz ao espectador uma perspectiva nova, especialmente quando o tema são as amizades e a diversidade. A roomate de Annie é Fran (Lolly Adefope), uma filha de nigerianos inglesa que mudou-se para Portaland para ser o que desejava: cabelereira. E também lésbica. Negra e gorda, a personagem traz outras camadas, como a família, os romances e o fato de não conseguir namorar com alguém por muito tempo. Suas questões estão para além do peso e/ou do corpo e exploram seus sonhos, como o fato dela gostar de cantar, curtir a vida e celebrar a própria solteirice. 
 
 
Finalmente, com a Fran, temos a prova de que é possível termos uma personagem gorda em um arco narrativo que não esteja esperando um homem para validar sua confiança, seus afetos, sua vida - ainda que ela deseje alguém com quem dividir a pessoa incrível que ela é. 






A série traz outros temas importantes como cancelamento, feminismo liberal, racismo, relações de trabalho e políticas públicas. Por esse aspecto, é bem contemporânea e assertiva, embora, muitas vezes, as piadas entre as personagens seja demasiadas ácidas e cansativas dada a repetição com que acontecem. 


Shrill é uma série que ensaia um riso da própria gordofobia. Podemos ver isso quando Annie confronta o que ela chama de ‘troll’ e nós chamamos de ‘hater’. A pessoa que a persegue nas redes sociais justamente porque ela representa tudo aquilo que ele gostaria de ser. Neste momento, vemos uma das cenas mais épicas e entendemos emergir toda força da personagem que vinha sendo minada pela opressão. 

Das mensagens possíveis, a que eu mais gosto é sobre como Annie se reinventa - mesmo que isso seja absurdamente cansativo para quem habita um corpo dissidente e como consegue alcançar os próprios sonhos quando deixa que a gordofobia e o preconceito do outro seja um fator determinante. Ao cruzar essa ponte, ela tem um ponto de virada interessantíssimo, ainda que o ‘happy end’ não seja tão feliz assim, mas realista. Talvez seja isso que mais me atraia na série: o fato de que o final poderia acontecer comigo e de que a personagem encontra formas de lidar com as próprias dores, falhas e imperfeições para além do corpo, mesmo quando esse insiste em atravessá-la. 




 
 
O final me lembra como é custoso, mas reconfortante aprender a transformar situações cotidianas ruins em algo ao menos divertido e palatável. Requer anos de prática, eu sei - e algum desprendimento - como o dia em que eu comprei, na companhia aérea, mais espaço em uma poltrona que mais confortável num voo entre Campinas (SP) e Recife (PE)  e fui obrigada a mudar de lugar após pedir um extensor de cinto

Naquele momento, diante da possibilidade de fazer um escândalo, de enviar um e-mail à Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) - que nunca teria resposta, nós sabemos - eu optei pela saída mais simples e talvez interessante: levei comigo o extensor de cinto e assim, nunca mais precisei pedir. Sento, desde então, agilmente, nas saídas de emergência - onde o espaço para esticar as pernas é maior - e, silenciosamente, afivelo meu cinto ao extensor pego de outro voo e viajo feliz. E sozinha, claro, pois como a Fran e a Annie, aprendi que dá pra ser incrível e curtir assim, afinal, merecemos mais do que uma saída pelos fundos, uma poltrona ou qualquer outro espaço que não nos cabe, onde temos que diminuir e/ou silenciar para caber. 



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