Na última semana a rapper norte americana Lizzo lançou o single “Rumors”, em parceria com a rapper Cardi B, em que se apropria dos comentários maldosos e carregados de ódio dos ‘haters’ e os transforma em versos carregados de ironia, onde afirma que todos os rumores sobre ela são reais.
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O vídeo foi visto por mais de 13 milhões de pessoas até a publicação desta coluna e aí, aparentemente, o que seriam os limões se tornando uma limonada ou mesmo uma caipirinha, no melhor estilo brasileiro expôs a fragilidade do mundo normativo quando falamos da ironia, do humor e da ressignificação a partir dos corpos gordos.
É permitido a um corpo gordo se divertir?
O fôlego foi curto e não demorou muito para que a vencedora de três categorias do Grammy em 2020 sofresse ainda mais ataques de haters, gordofóbicos e racistas nas redes sociais, evidenciando o que falo semanalmente nesta coluna: corpos gordos são tolhidos do direito à existência.
Em uma live no próprio perfil do Instagram a cantora desabafou sobre os ataques e chorou, enquanto conversava com os fãs.
"As vezes, sinto que o mundo não me ama de volta. E como se não importasse quanta energia positiva eu mande, ainda vão existir pessoas falando algo maldoso para você. Eu sinto que vem muita negatividade até mim dos jeitos mais estranhos, tipo, pessoas falando besteiras sobre mim que não fazem sentido algum. E racismo e gordofobia. Isso machuca”, disse Lizzo.
O que Lizzo experimenta com isso é a insuficiência dos corpos gordos diante da sociedade que os oprime. É a sensação de que não importa o quão talentosa, bonita e genial ela seja, sendo gorda, qualquer ato incrível perde a importância para dar lugar ao julgamento corporal.
Recentemente, tenho me debruçado sobre a pergunta: o que a gordofobia fez com você? E os relatos que recebo são muito cruéis, porque denotam a impossibilidade da pessoa gorda de existir e, caso ela consiga, de ser feliz e externar essa felicidade. É quase como se esse corpo gordo e feliz não fosse possível.
E cabe também a reflexão: o quanto de violência um corpo gordo é capaz de suportar? Até quando só falar sobre nossas dores será aceitável?
Me questiono sobre o quanto a postura de vítima é aceita e tende-se a ser complacente com ela, com soluções já prontas, porém, o quanto ela invalida a subjetividade das pessoas - neste caso, gordas. O quanto um corpo gordo precisa se desdobrar para ressignificar a própria existência diante de um mundo que coloca o dedo na sua cara o tempo todo e nega sua existência?
Só temos valor se estivermos falando das nossas dores e experienciando-as, caso contrário
Ainda sim, é quase ofensivo: um disparate, vejam só, acreditar que é possível ter um corpo gordo e ser feliz. Num primeiro momento, não acreditariam. Como pode um corpo dissidente encontrar felicidade? E, mais grave, se ele encontrar, o que será de quem ‘se esforçou’ tanto para encontrar a famigerada felicidade, reservada e destinada àqueles que obedecem as normas, que ‘se esforçam’.
A narrativa meritocrática do mundo nos convenceu que temos que nos esforçar para merecer a felicidade e esse esforço envolve ter um corpo obediente , magro, que caiba nas roupas, espaços e expectativas, não importa a que custo, a que preço.
Apesar do choro de Lizzo - e eu entendo ele, já que desmistifica também que a pessoa que se ama não se abala com o ódio gratuito destinado a ela, a cantora se humaniza diante dos fãs e garante que está bem, que vai focar nos comentários positivos e que seguirá transformando o comportamento do ódio em cifras e prêmios musicais.
Mas aqui, neste momento, sequer o humor e a ironia - essa ferramenta tão eficaz pros corpos dissidentes para dar conta da opressão - são capazes de criar lugares seguros para nossos corpos.
A estes corpos, nada é permitido. Já aos haters, todos os tipos de violência, de agressões, comentários e piadas é estimulado. Não são raros os casos de ‘humoristas’ brasileiros que acham interessante e engraçado fazer, ainda em 2021, piadas com corpos gordos. Também não são poucos os casos em que a violência, através dos comentários, é notada. Basta que um corpo gordo tenha destaque para que isso aconteça e aí, entra o ‘fenômeno’: quanto mais feliz e em posição de diversão estiver este corpo, mais ataques ele vai sofrer.
O discurso de que os corpos gordos fariam parte de uma conjuntura pandêmica impele às pessoas ao controle rigoroso dos corpos, não só os próprios, mas os alheios também. De acordo com os pesquisadores Baltasar Fernández-Ramirez e Enrique Baleriola Escudero no estudo “Estigma e identidade das pessoas obesas na semântica do discurso público”, “uma máquina comercial extremamente rentável para eliminar os corpos gordos tem galgado um espaço social por meio da propagação maciça dos benefícios de dietas, cirurgia, exercício e mudança de estilo de vida”.
Contudo, de acordo com eles, na publicação “Discriminação baseada no peso: representações sociais de internautas sobre a gordofobia” para além do questionamento sobre a função legítima das alternativas de emagrecimento, o questionamento é em relação à extensão desse discurso e a imposição hegemônica dessa suposta verdade sobre o padrão corporal como o único modo digno ou apropriando dos atores sociais a circularem ou se sentirem pertencentes à sociedade.
Ainda segundo os pesquisadores, embora exista o discurso de preocupação com a saúde dos corpos gordos, o campo imagético dessa classe evidencia que os internautas - e/ou haters - se apropriem do discurso científico sobre a obesidade como doença e legitima processos de exclusão, preconceito e discriminação em relação às pessoas gordas.
Logo, conforme demonstram os autores do estudo, a intolerância às pessoas gordas pode ser travestida sob a forma discursiva de declarações de teor como “só estamos preocupados à saude”, ou ainda mais agressivos, mas sem qualquer preocupação com as pessoas que sofrem a discriminação.
O que pouco se discute é o impacto das agressões virtuais, ou cyberbullying, se formos usar o termo jurídico, na vida offline das pessoas, sejam ela artistas internacionais como a Lizzo ou pessoas comuns.
Alguns dados podem nos ajudar a pensar sobre isso. Há algumas semanas, um jovem se matou após comentários maldosos em um vídeo seu demonstrando afeto.
O Brasil é o segundo país das Américas com o maior número de pessoas depressivas, o equivalente a 5,8% da população, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, com 5,9% do total da população, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Além disso, a mesma OMS aponta que o estigma tem relação aos corpos gordos tem consequências na psiquê, incluindo um agravamento em questões como depressão, ansiedade e redução da autoestima.
Contudo, vale ressaltar que no Brasil é possível denunciar agressões virtuais na delegacia de crimes virtuais e é possível criminalizar a gordofobia online a partir do crime de injúria.
É importante ainda dizer que ainda que, apesar de tudo, o objetivo da música de Lizzo não é agradar o público em geral, mas servir de incentivo às outras pessoas, sobretudo garotas jovens que são gordas e pretas, como ela. Lizzo não é uma “fada sem defeitos” como costumam dizer na internet, em contraponto aos ataques odiosos. Tampouco uma fortaleza - apesar do tamanho - e é urgente que a gente estabeleça com naturalidade a fragilidade para mulheres grandes e gordas. Que esteja tudo bem chorar porque sofreu uma agressão, ainda que você não concorde com ela.
Lizzo está exausta. Assim como eu. Assim como nós, mulheres gordas. Assim como todos os corpos dissidentes que não conseguem simplesmente existir, mas tem que ficar provando que podem fazer isso. As marcas que a gordofobia causa são imensas - maiores que nossos corpos e a falsa preocupação que dizem ter com a nossa saúde. E conseguir transformar isso em algo positivo, divertido, engraçado, irônico como a música ‘Rumors’ talvez seja o mais impressionante no processo todo.
Toda atenção negativa faz com que Lizzo seja ainda mais brilhante no que se propõe a fazer. Rumors chega como uma mensagem de empatia e sororidade - esse tão estranho conceito e pouco praticado - às mulheres negras e gordas que ainda se sentem mal e inadequadas com seus corpos.
Na canção, tal qual no clipe, Lizzo, ao lado de Cardi B, prova que sensualidade irradia de dentro para fora, a despeito do tamanho do corpo e dos olhares destinados a ele. A mensagem é positiva e divertida, em resposta ao que recebe diariamente. É uma música que faz os gordofóbicos se sentirem desconfortáveis.
Nos dizem, o tempo todo, que não podemos existir, mas, ainda sim, transformamos isso, inclusive, num motivo pra existir e celebrar essa existência. E que bom que a Lizzo nos brinda com isso. Com seu corpo grande, gordo e preto dançando, tal qual uma deusa, no Olimpo que ela mesma construiu pra si, onde ser talentosa, divertida e imensa é o seu grande trunfo - e o nosso - por mais que esperneiem tentando nos convencer do oposto.
Tal qual a Lizzo, ainda que cansadas, possamos nos divertir sobre o ódio e celebrar quem somos.