“Seu corpo é um exagero”. Essa foi a frase que ouvi da minha antiga psicanalista e que ressoa, até hoje (quase dois anos depois) de diferentes formas e haja divã, um novo analista e trabalho para elaborar as formas como a gordofobia nos atravessa inclusive onde deveríamos nos sentir mais acolhidos: no consultório, sob transferência analítica, com quem temos um acordo firmado.
Era janeiro o mês e não setembro, quando todo mundo parece se importar em subir a hashtag #SetembroAmarelo, falar sobre suicídio, criticar quem fala sobre suicídio, dizer que o inbox e a DM - esse termos moderninhos para designar uma espécie de ouvido online - estão abertos para ouvir quem estiver em sofrimento. E tudo isso, claro, se a pessoa em questão não for gorda.
Conforme nos disse Freud - o pai da psicanálise - no V Congresso Psicanalítico Internacional de Budapeste, na Hungria, em 1918, ao aventar a possibilidade de clínicas públicas de psicanálise: “todos têm direito a escuta”. E isso permanece.
Todes têm direito a escuta, exceto, claro, se essa pessoa for gorda. Para além da posição de vítima, não estamos protegidos nem no lugar em que pagamos para sermos ouvidos.
Já trouxe nessa coluna, mas volto a repetir:a gordofobia causa mais problemas às pessoas gordas do que a quantidade de gordura abdominal.
E cabe dizer aqui que no mês de setembro, desde 2014, que a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) em parceria com o Conselho Federal de Medicina (CFM) organiza nacionalmente o Setembro Amarelo e o dia 10 deste mês é, oficialmente, o Dia Mundial da Prevenção ao Suicídio.
É também no dia 10 de setembro que ocorre o Dia da Luta Antigordofobia, que embora as origens sejam desconhecidas, foi ressignificado no país a partir de 2017 quando o movimento Vai Ter Gorda conquistou espaço para uma sessão especial com debate e homenagens no Plenário Cosme de Farias, na Câmara Municipal de Salvador.
Sendo assim, ao menos por aqui, saúde mental e corpos gordos vão coexistir. E vamos falar sobre o que poucas pessoas estão abertas para escutar.
Pessoas gordas são a maioria da população brasileira. Segundo o Ministério da Saúde, 56%, no entanto, são uma parcela negligenciada e com acessos negados diariamente, inclusive à saúde mental.
Tristeza pesa? E, se sim, qual o peso da tristeza?
Uma pesquisa da Nature Medicine, de 2020, publicou um consenso internacional onde revela que “o estigma do peso prejudica a saúde, prejudica os direitos humanos e sociais e é inaceitável nas sociedades modernas”.
O levantamento traz uma extensa revisão de estudos em que os 36 autores diretamente envolvidos com o artigo constataram que o preconceito compromete a saúde de pessoas acima do peso e dificulta o acesso a medicamentos e tratamentos. A gordofobia inclusive contribui para os altos índices de suicídio pessoas gordas em todo o mundo.
Dados da publicação mostram que a prática da opressão é constante e ocorre em grande parte dos países. Entre adultos gordos, de 19 a 42% sofrem com a discriminação. As taxas são ainda mais altas entre as mulheres e aqueles com corpos maiores.
Muito se ouve, se lê e brotam haters das profundezas dos esgotos da deep web para dizer: “mas só estamos preocupades com a sua saúde”. O que ninguém diz é que entre os fatores de risco às pessoas gordas, a depressão acarreta um impacto muito grande na expectativa de vida das pessoas gordas.
A gordofobia está diretamente associada a sintomas depressivos, altos índices de ansiedade, baixa autoestima, isolamento social, estresse, uso de drogas e compulsões. Sendo assim, tratar corpos gordos como exagero, na clínica psicanalítica, não vai fazer com que pessoas gordas tenham vontade de serem magras, mas vai causar traumas e doenças bem mais severas do que a gordura no corpo poderia provocar.
Entre os fatores que reduzem a expectativa e qualidade de vida das pessoas gordas, a depressão se apresenta como uma tristeza profunda e duradoura, que pode ser associada a outros sintomas como falta de interesse e até mesmo dor física. No Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 30% dos pacientes que buscam tratamento para a perda de peso apresentam depressão.
Tal condição traz impacto ao índice de outras comorbidades, há que, em casos mais graves, pode levar as pessoas gordas ao suicídio.
A depressão é debilitante e quem sofre é impactado pela ausência de prazer, oscilações entre culpa e baixa autoestima, sensação de cansaço, falta de concentração, distúrbios no sono e no apetite, desordem alimentar, impedindo a pessoa de se exercitar, seguir uma dieta saudável, afastando-a de atividades sociais e até mesmo de tratamentos médicos, já que a gordofobia médica é também uma realidade e afasta pacientes dos postos, hospitais e consultórios.
O desafio de falar de gordofobia e saúde mental é imenso, já que pessoas gordas são, o tempo todo, ridicularizadas e excluídas da sociedade, têm afeto e saúde negados, o que desencadeia mais tristeza e, por conseguinte, quadros mais graves de depressão.
Uma pesquisa realizada pela Universidade do Sul da Austrália e Universidade de Exeter, no Reino Unido, traz evidências de que corpos gordos têm mais propensão à obesidade. O estudo divulgado em 2018 no periódico International Journal of Epidemiology aponta que a depressão é mais comum em pessoas gordas e conclui que quanto mais elevado o Índice de Massa Corporal (IMC), mais probabilidade da pessoa ter depressão, ainda que ela não tenha outros problemas de saúde, como diabetes, comumente associada aos corpos gordos.
Para chegarem a esta conclusão, os pesquisadores utilizaram os dados de 48 mil pessoas com depressão e os compararam com um grupo de mais de 290 mil pessoas, com informações médicas e genéticas. Usando genes associado a um maior IMC, mas menor risco de doenças como diabetes, os cientistas separaram o componente psicológico dos corpos gordos do impacto dos problemas de saúde provocados pelo peso. Além disso, o defeito é mais forte em mulheres do que em homens, segundo a pesquisa.
Conforme disse a pesquisadora Jess Tyrrel, da Universidade de Exter: “A análise genética conclui que o impacto psicológico de ser gordo provavelmente causa depressão”. Ainda segundo ela, tal conclusão é importante para direcionar esforços para reduzir então a depressão nas pessoas gordas, já que, sem a saúde mental funcionando, é ainda mais complicado a pessoa comumente excluída e rechaçada, a adoção de hábitos de vida mais saudáveis.
Outro ponto é, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), pessoas depressivas têm aumento dos níveis de estresse e, consequentemente, do estado inflamatório do organismo, o que pode gerar aumento e ganho de peso e também provocar resistência ao hormônio da insulina, essencial no controle de taxas de glicose no sangue.
Logo, tratar a saúde mental é urgente. E você pode estar pensando em sugerir: “emagrece que passa”. No entanto, nem todas pessoas gordas querem emagrecer. Nem todas pessoas gordas podem emagrecer. E, ainda que o façam, não é garantia de nada.
Pessoas que passam por uma cirurgia bariátrica têm um risco 50% maior do que a média da população de tentar cometer suicídio após a operação – é o que aponta uma pesquisa divulgada no Journal of the American Medical Association (JAMA). O levantamento envolveu 8.815 habitantes da província canadense de Ontário que passaram por cirurgia bariátrica (banda gástrica, gastroplagia, bypass, etc.) entre 2006 e 20111.
E agora?
Munidos de dados e pesquisas científicas, agora podemos pensar que no arrancar da folha do calendário, de ontem para hoje, todos meus amigues se transformam em ouvintes, formados ou não em práticas de saúde mental, mas a minha pergunta é a mesma, repetida de diferentes formas em todas as colunas: quando você pensa em saúde mental, você pensa também nos corpos gordos?
E é uma pergunta retórica, afinal, eu conheço a resposta. Nenhuma ação do Setembro Amarelo sequer considera os corpos dissidentes e gordos. Não há escuta. Não há preparo. Não há post. E essa invisibilização, inclusive no mês da saúde mental, gera ainda mais desgaste para as pessoas gordas.
E é uma pergunta retórica, afinal, eu conheço a resposta. Nenhuma ação do Setembro Amarelo sequer considera os corpos dissidentes e gordos. Não há escuta. Não há preparo. Não há post. E essa invisibilização, inclusive no mês da saúde mental, gera ainda mais desgaste para as pessoas gordas.
Sabemos que isso acontece porque não somos lidos como seres humanos e essa animalização leva ao senso comum de que merecemos ser punidos por não obedecermos à norma e/ou não nos ‘esforçarmos’ para caber nela.
Não importa o mês e nem a cor dele. As frases depreciativas continuam chegando, a patologização. As desculpas de preocupação com a saúde para justificar a gordofobia, entre outros seguem sendo mecanismos opressores contra nossos corpos e seguem nos
Fiz uma listinha de alguns xingamentos que recebo na internet e fora dela e gostaria de compartilhar neste mês de preocupação com a saúde mental alheia - desde que ela não habite um corpo gordo, que você deseja exterminar.
- ninguém é obrigade a ver suas fotos
- ninguém quer esse amontoado de banha
- parece um rinoceronte
- que retardada
- merece morrer por não se esforçar
- que escrota
- prefiro morrer a me tornar uma baleia
- vou fazer uma gordice
- você romantiza a obesidade
- ser gorda tudo bem, mas obesa já é demais
- só estou preocupado com a sua saúde
- obesidade é doença
- não quero que você use o dinheiro dos meus impostos para tratar sua
E, como já disse, mas volto a repetir: ninguém está preocupado com a saúde de ninguém. Caso estivessem, vocês doariam sangue para salvar vidas e não gastariam tempo na internet patrulhando corpos.
Quando falamos em saúde, falamos em saúde mental também. Se vocês se preocupam tanto com ela, por que não nos poupam de tanta hostilidade? É quase impossível alcançar a saúde quando se lida com a gordofobia no cotidiano, a gordofobia médica, a gordofobia psicanalítica. Existe privilégio magro atravessando até nosso direito à saúde mental.
E, como já disse, mas volto a repetir: ninguém está preocupado com a saúde de ninguém. Caso estivessem, vocês doariam sangue para salvar vidas e não gastariam tempo na internet patrulhando corpos.
Quando falamos em saúde, falamos em saúde mental também. Se vocês se preocupam tanto com ela, por que não nos poupam de tanta hostilidade? É quase impossível alcançar a saúde quando se lida com a gordofobia no cotidiano, a gordofobia médica, a gordofobia psicanalítica. Existe privilégio magro atravessando até nosso direito à saúde mental.
Comportamentos violentos e gordofóbicos, celebrados em sociedades neoliberais, são exclusivamente punitivistas e querem dizer apenas o que meritocracia diz o tempo todo: é preciso se esforçar para merecer e corpos gordos são lidos como feios, preguiçosos e, portanto, toda e qualquer violência contra eles é justificada.
Comportamentos violentos e gordofóbicos, celebrados em sociedades neoliberais, são exclusivamente punitivistas e querem dizer apenas o que meritocracia diz o tempo todo: é preciso se esforçar para merecer e corpos gordos são lidos como feios, preguiçosos e, portanto, toda e qualquer violência contra eles é justificada.
O Setembro Amarelo, com suas boas intenções de escuta e prevenção ao suicídio evidencia que ser um corpo gordo nunca é suficiente. E essa insuficiência para existir é dilacerante. Cansativa. E enlouquecedora.
Gostaria de encerrar mais positiva e propositiva. Queria falar sobre a alegria na pessoa gorda, as possibilidades de ser feliz, mas, nós sabemos que inclusive a falta de acesso e inclusão na saúde mental e na pauta do mês dedicado a isso são propositais. Pessoas gordas e felizes são um contra senso num mundo que luta - e lucra - para que as mesmas não existam, mas te pergunto: nesse Setembro Amarelo, o que você tem feito pela saúde mental da pessoa gorda?