Jornal Estado de Minas

SAÚDE

Dissidentes no divã: escuta pública incentivada pelo Saúde Sem Gordofobia


 
Os dissidentes no divã. Essa foi a proposta da iniciativa Saúde Sem Gordofobia, comandada pelas psicanalistas Gabi Menezes e Laís Sellmer que, no último sábado (11/09), reuniu 16 pessoas, num mutirão de atendimento presencial e online em São Paulo (SP), com  atendimento no divã e também psiquiátrico, apoiado pela psiquiatra Marjorie Ricciardi, numa tentativa de promover a escuta sem barreiras. 





O Saúde Sem Gordofobia é uma iniciativa que ocorre online através do perfil @saudesemgordofobia no Instagram e presencialmente por meio de mutirões. Na internet, de forma organizada, a dupla reúne um banco de dados com pelo menos 600 profissionais da área da medicina de diferentes lugares do país, indicados por pacientes ou submetidos a uma longa e minuciosa entrevista para comprovarem que são empáticos às causas e corpos das pessoas gordas. 
 
 
 
Freud estaria feliz ao ver isso acontecer. Sim, estou novamente falando de Setembro Amarelo, corpos gordos e psicanálise. Já falei também na coluna Setembro Amarelo: saúde mental para quais tipos de corpos?, mas nã custa lembrar do desejo do ‘pai da psicanálise’ ao aventar a possibilidade de clínicas públicas de atendimento, reforçando que “todos têm direito a escuta”. 

Mas têm mesmo? Por aqui, tenho muitas dúvidas. Mas também muita esperança. Saber que temos psicólogas dispostas a, num sábado, abrir a clínica para atendimento gratuito me enche o peito a ponto de acreditar que somos o agora: o futuro que está acontecendo entre os que foram, de algum jeito, rejeitados pela norma. 





“Duas freudianas juntas geraram o ‘Saúde Sem Gordofobia’ e acreditamos que a psicanálise é sim para todes, precisa parar de ser elitizada, precisa abraçar todos os corpes e classes sociais. A psicanálise nasce com uma crítica social e nós vemos como um instrumento de acesso”, disseram as criadoras da iniciativa. 

Vale dizer também que em julho deste ano o projeto agilizou a vacinação de pessoas gordas contra Covid-19 em todo o país através de mutirões presenciais e online para emissão do laudo exigido. 

No entanto, a discussão segue. Em Salvador (BA), o movimento Vai Ter Gorda, coletivo que luta pela causa das pessoas gordas no país, realizou, na manhã de domingo (12) um campanha pelo Setembro Amarelo, chamando a atenção também para a escuta das pessoas gordas. O ato foi para chamar a atenção das pessoas contra a exclusão social. 




 
 

Para além das estatísticas, já citadas em artigos anteriores, sobre como a depressão, a exclusão, o bullying e cyberbullying podem ser fatores mais agravantes a uma pessoa gorda do que o peso de uma pessoa, é importante que destaquemos aqui a qualidade de escuta. 

Não raro, recebo relatos de pessoas gordas que foram maltratadas nas clínicas de psicanálise, psicoterapia ou psiquiatria, induzidas a emagrecer, provocadas a assumirem uma postura infeliz diante do próprio corpo dissidente e, não só, contrariando tudo que se pode ser aprendido no ensino sobre saúde mental, muitos psicólogos abarrotam as redes sociais com fórmulas mágicas de emagrecimento saudável, atreladas a sugestões de “Jornada do Emagrecimento Consciente”, com dizeres em letras garrafais como “Não é sobre fechar a boca, mas sobre abrir a mente”.
 
Além de ferir o código de ética da profissão, é extremamente perigoso. Só quem pode receitar dietas são nutricionistas habilitados para tal. Aos psicólogos, cabe a escuta dos pacientes. Atribuir formas de lidar com o próprio corpo, além de passível de punição, é violentíssimo. 





Imagine você, buscar uma escuta para seus problemas que podem ter zero ligação com seu corpo ou o tamanho dele, mas passarem por coisas corriqueiras, como um chefe autoritário, insônia recorrente, ansiedade e ter isso atribuído a sua forma de se alimentar ou ao seu peso. 

Pensa comigo que, ao invés dessa pessoa que é paga para te ouvir, te oferecer escuta, ela vai te oferecer uma dieta, uma solução mágica a partir da mudança das suas próprias crenças e uma ‘jornada’ que pode ter nada a ver com as suas queixas ou com o preconceito e opressão latentes na sociedade. 

Emagrecer pra caber até no ideal de psicólogos não é o caminho. Não deve ser. 

E, no mês da saúde mental, em que seguimos não cabendo em cadeiras, portas, elevadores, catracas e divãs, se faz urgente denunciar tais comportamentos e celebrar outros tantos, como o do Saúde sem Gordofobia, que quebra com o estigma e medo que nós, pessoas que habitam corpos dissidentes temos de ir ao médico. 




 
 
 
Também no mês da pessoa gorda e da luta antigordofobia, se faz imprescindível que juntemos as pautas e falemos sobre a intersecção destes temas, já que é impossível ser uma pessoa gorda e habitar o Brasil de 2021 sem a saúde mental em dia, ou, no mínimo, em tratamento. 
  

E nessas urgências todas, quero dizer que ninguém precisa ser excelente o tempo todo. Estar bem o tempo todo. Estar feliz - tarefa difícil, inclusive, durante uma pandemia e um governo autoritário -, embora eu acredite na felicidade como tecnologia de resistência e existência e, como diria Belchior, como arma quente, requer muito da gente. Tanto que às vezes não conseguimos dar. E ok que seja assim. E ok que não estejamos bem. Que não queiramos emagrecer para atender psicólogos por aí. Ou que queiramos - e busquemos ajuda para isso. Ou que só busquemos escuta. 

É do ser humano buscar escuta. Queremos ser ouvidos. Queremos verbalizar o que nos atravessa e o que sentimos. E, nós, corpos dissidentes, queremos ser humanizados. Embora eu tente caminhar para fora da borda que regula a norma posta, entendo que muito dos nossos esforços são para caber na norma vigente, porque somos forjados em acreditar que só assim a felicidade é possível. 





Saltar no escuro acreditando que é possível sermos felizes em quais corpos que tenhamos é tão assustador quanto parece. E libertador também. Mas, por vezes - na maioria delas - exige escuta. E essa escuta está só começando. 

Por isso, celebro o divã público. Sonho com o dia em que, para virar votos, vamos instalar divãs nas praças e esquinas e não banquinhas com bolo e café. Fantasio com as clínicas públicas em que todos - até mesmo os corpos lidos como monstruosos, como o meu - serão ouvidos em sua essência e no que de mais íntimo têm a confessar para si mesmos. 

Por enquanto, nos inspiremos em projetos como o Saúde Sem Gordofobia e escutemos. 


audima